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Teresa Lencastre

Os cavalos foram inicialmente domesticados para a produção de leite e carne?

27 Jun 2024 - 09:00
A rapidez dos cavalos teve um papel importante na sua domesticação, mas não foi o único fator que despertou o interesse dos seres humanos. Uma nova análise genética sugere que foram domesticados pelo menos duas vezes: a primeira tentativa visou a produção de leite e carne, e a segunda – a que prevaleceu – teve como objetivo o transporte.
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Publicada este mês na revista Nature, uma nova análise sugere que os caçadores-recolectores do Botai, na Ásia Central, podem ter sido os primeiros seres humanos a domesticar os cavalos para produção de leite e carne, há cerca de 5 mil anos. Essa tentativa, no entanto, não terá vingado.

Mais tarde, há perto de 4.200 anos, outros povos que viviam a norte das montanhas do Cáucaso domesticaram cavalos para transporte, refere a investigação. Estes animais revolucionaram o mundo equino. Em apenas alguns séculos, substituíram os seus parentes selvagens e tornaram-se no cavalo doméstico moderno.

Os investigadores examinaram o ADN de 475 cavalos antigos que viveram há 50 mil anos e de 77 cavalos modernos. Combinando essa análise genética com a datação por carbono e dados arqueológicos, estabeleceram uma cronologia para a domesticação dos cavalos.

Segundo o estudo publicado pela revista nature, a primeira tentativa de domesticar cavalos, ocorrida há cerca de cinco mil anos, na Ásia Central, teve como objetivo a produção de carne e leite.

“Estas descobertas são muitíssimo importantes, pois permitem perceber a importância de conjugar dados científicos de diferentes naturezas – genéticos, arqueológicos – e de que forma se pode investigar a história das sociedades humanas através dos animais a elas associadas”, diz ao Green eFact Cristina Luís, especialista na história da domesticação dos cavalos.

A investigadora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa admite que “há dúvidas” sobre o motivo exato da domesticação destes animais. Apesar de serem várias as possíveis razões, muito provavelmente a mais importante foi a sua capacidade de transportar bens e pessoas.

Cristina Luís adianta que no Botai, atual Cazaquistão, descobertas arqueológicas sustentam a teoria de que terão sido, em primeira instância, domesticados para consumo do ser humano. Ainda assim, “não existe uma forma de confirmar se os habitantes de Botai domesticaram totalmente os cavalos”, considera.

“Existem indícios de pátios vedados que podem ter acolhido manadas deste animal, alguns dentes de cavalo encontrados entre os achados apresentam desgaste de mordedura, como se tivessem sido atrelados, e fragmentos de cerâmica encontrados contêm vestígios químicos de leite de égua, que poderia ter sido consumido como manteiga, iogurte ou queijo” descreve.

É possível que os habitantes do Botai tenham até montado alguns dos cavalos para pastorear outros, “mas provavelmente não estavam a gerir a criação ou a usar os animais extensivamente como animais de carga ou de transporte”, esclarece a investigadora.

Cristina Luís, investigadora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e especialista na história da domesticação dos cavalos, admite que “há dúvidas” sobre o motivo exato da domesticação destes animais.

Sobre a segunda etapa de domesticação descrita na análise, Cristina Luís adianta que foi levada a cabo por “povos que viviam nas estepes do que é atualmente o sudoeste da Rússia”.

“Estes cavalos espalharam-se rapidamente pela Europa e pela Ásia e a velocidade da propagação parece sugerir que as pessoas domesticaram os cavalos com a mobilidade em mente. No entanto, embora os dados recolhidos através de análises genéticas pareçam apontar para uma resposta clara quanto à domesticação, ainda há muito espaço para interpretação e discussão”, sublinha.

Este novo trabalho, escreve a Science News, põe em causa anteriores teorias sobre quem domesticou os cavalos, quando e porquê. No passado, por exemplo, a domesticação dos animais foi atribuída aos antigos povos do sudoeste asiático, os Yamnaya, considerados os primeiros cavaleiros.

“Os Yamnaya eram pioneiros que pegaram em carroças puxadas por gado e deixaram as pastagens cada vez mais secas há cerca de 5 mil anos para construir novas casas na Europa e na Ásia. Ao longo do caminho, ajudaram a construir as principais culturas da Idade do Bronze na Europa”, refere a revista. Com as novas descobertas, contudo, é impossível que isso tenha sido feito a cavalo, adianta, citando peritos em arqueologia molecular.

A investigadora Cristina Luís considera que a domesticação do cavalo “revolucionou, sem dúvida, as sociedades humanas, tornando-as muito mais móveis”.

Questionada sobre as consequências da domesticação dos cavalos para a humanidade, Cristina Luís responde que “o cavalo doméstico revolucionou, sem dúvida, as sociedades humanas, tornando-as muito mais móveis”.

“[A domesticação] alterou os padrões comerciais e os modos de guerra. Estas alterações afetaram a forma como as sociedades se organizavam e interagiam umas com as outras”, refere.

Por outro lado, a domesticação também impactou a espécie. Ao longo dos tempos o interesse nos cavalos foi aumentando precisamente por motivos de mobilidade e transporte, diz a investigadora, e a seleção dos animais foi feita em função dessa utilização.

“Assim, alguns cavalos foram sendo selecionados, entre variadíssimos usos, com base na sua velocidade, com base no conforto ao serem montados para auxiliarem no trabalho de pastoreio ou com base na sua força ou agilidade para tração de carros de transporte”, conclui.

Ao longo dos tempos o interesse nos cavalos foi aumentando precisamente por motivos de mobilidade e transporte, diz a investigadora, e a seleção dos animais foi feita em função dessa utilização.

A par da Ásia, a Península Ibérica teve um papel importante na história da domesticação dos cavalos. No passado, Cristina Luís coassinou um artigo internacional que identificou a região como preponderante para a domesticação destes animais na região e no resto da Europa.

A análise revelou que as vastas áreas abertas ibéricas terão servido de refúgio para cavalos selvagens há 6 mil anos, quando a Europa se encontrava maioritariamente coberta por florestas. O estudo conclui ainda que as espécies da Península Ibérica deram o seu contributo genético aos atuais cavalos europeus.