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Miguel Judas

O aumento do calor tem efeitos na criminalidade?

7 Nov 2023 - 10:00
Foi no final do século XIX que se realizaram os primeiros estudos sobre os efeitos da temperatura no comportamento humano e desde então comprovou-se uma relação entre estes dois fatores. No entanto, a partir do final do século passado, o aumento da consciência ambiental levou a um maior aprofundamento desta questão e os resultados mais recentes não são propriamente os mais animadores, revelando uma clara relação entre calor e violência.
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É uma discussão antiga, mas que a subida da temperatura global tem relançado e a ciência tem vindo a comprovar. Afinal, o tempo quente provoca mesmo um crescimento dos atos violentos, o que não augura nada de bom para o futuro, tendo em conta os picos de calor dos últimos anos. Segundo um artigo publicado na revista Forbes em julho deste ano, cerca de um quarto dos tiroteios em massa ocorridos nos Estados Unidos até então ocorreram no espaço de um mês, entre 1 de junho e 1 de julho, no preciso momento em que as temperaturas começaram a aumentar, levando, mais uma vez, os peritos em criminalidade a focarem-se na correlação entre calor e crimes violentos. De acordo com os dados Gun Violence Archive, só no ano passado foram 278 os tiroteios em massa ocorridos nos meses de verão, ou seja entre junho e setembro, o que representa 86% de todos os 324 ocorridos em 2022.

Um estudo publicado em 2016 no American Journal of Public Health, também citado no artigo da Forbes, analisou as tendências dos tiroteios em massa entre 2013 e 2015 e revelou como estes aumentam durante os meses de verão, indicando aquilo a que os investigadores apelidaram de “influência sazonal”. Já em 2014, ainda de acordo com a Forbes, um relatório especial do Bureau of Justice Statistics tinha analisado os padrões sazonais e as tendências criminais, concluindo que crimes violentos (como homicídios ou violações) “são mais prováveis de acontecer durante o verão”.

Segundo alguns estudos, é provável que os crimes violentos continuem a aumentar no futuro, acompanhando a subida das temperaturas, devido às alterações climáticas

Também a academia tem estado cada vez mais atenta a este fenómeno, como alerta um artigo publicado em setembro de 2021 na The Lancet, uma das mais prestigiadas publicações de medicina, lembrando os seus autores que “as alterações climáticas têm numerosos efeitos adversos para a saúde, como morbilidade e mortalidade relacionadas com o calor ou as doenças respiratórias causadas pelo fumo dos incêndios florestais (…), no entanto, o efeito potencial das altas temperaturas no aumento da violência interpessoal, no contexto das alterações climáticas, tem recebido muito menos atenção”.  O artigo cita por exemplo um estudo realizado “em sete cidades dos EUA, que chegou à conclusão que “a cada aumento de 5°C na temperatura média diária, entre 2007 e 2017, foi associado um aumento de 4,5% nos crimes sexuais nos 8 dias seguintes”; Ou ainda uma investigação de âmbito nacional, realizada entre 2012 e 2015 no Japão, onde se descobriu que o transporte de ambulâncias devido a agressões aumenta consoante a subida das temperaturas diárias. Todos os estudos citados no artigo concluem aliás isso mesmo, que “os incidentes violentos mostram uma distribuição sazonal, segundo a qual a maioria dos crimes ocorre no verão”.

Esta associação entre temperatura ambiente e crimes violentos é explicada por duas teorias que de certa forma se complementam entre si. A primeira, conhecida como teoria biológica, explica que o clima quente induz à violência interpessoal por aumentar o desconforto corporal, provocando impulsividade e agressividade nalguns indivíduos. Não explica porém como se processa o aumento da violência em zonas onde a temperatura passa de fria para quente, atingindo os já citados picos de criminalidade no verão. Isto conduz à segunda teoria, batizada de “teoria da atividade rotineira”, a qual sugere que as mudanças de temperatura ambiente alteram também as rotinas das pessoas. Por exemplo, com mais eventos ao ar livre e maior número de contactos sociais, que poderão por seu turno aumentar os conflitos interpessoais e em último caso para o crime. Claro que para a equação estar completa é necessário juntar diversos outros fatores, sejam eles demográficos, socioeconómicos, cognitivos ou biológicos, inerentes a cada individuo. As evidências, todavia, demonstram que o fator temperatura também não pode, nem deve, ser desvalorizado, especialmente quando em todo o mundo são batidos recordes de calor.

É portanto provável que os crimes violentos continuem a aumentar no futuro, acompanhando a subida das temperaturas, devido às alterações climáticas. Como já previa em 2014 Matthew Ranson, um especialista em estatística e análise de dados, num artigo sobre “o impacto das mudanças climáticas na prevalência da atividade criminosa nos Estados Unidos”, publicado na plataforma Science Direct. Segundo este investigador e em comparação com 2010, “até ao final deste século e devido às alterações climáticas, poderão ocorrer nos EUA mais 22 mil assassinatos, 1,2 milhões de agressões agravadas e 2,3 milhões de agressões simples”.