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Paula Alves Silva

Há matéria-prima suficiente para alimentar a transição energética?

18 Sep 2023 - 09:23
Os especialistas acreditam que a história da transição energética pode ser escrita seguindo as linhas da sustentabilidade, se essa for a vontade.
verdadeiro

Debaixo das águas que ligam Grain, no Reino Unido, a Fedderwarden, na Alemanha, vão correr mais de 700 quilómetros de cabos de eletricidade proveniente de energia limpa. O projeto em curso encontrou, contudo, um obstáculo: escassez de material no mercado. O cobre, necessário para o fabrico dos cabos, é uma das principais matérias-primas utilizadas na construção de infraestruturas de energia renovável.  

Poderão ser requeridos quase dois mil milhões de toneladas de aço e 1,3 mil milhões de toneladas de cimento para as infraestruturas energéticas até 2050, indica um estudo publicado no jornal Joule.

A produção de disprósio e neodímio (metais utilizados nos ímanes das turbinas eólicas) terá de quadruplicar nas próximas décadas. O polissilício será outro produto de primeira necessidade, prevendo-se que o mercado mundial da energia solar cresça 150% até 2050.

Juntam-se a estes o cobalto, o grafite, o lítio e o níquel, entre outras matérias-primas essenciais.

À medida que o mundo se projeta para alcançar a neutralidade carbónica, prevê-se que a procura de matérias-primas cresça exponencialmente.

A Agência Internacional da Energia prevê que a capacidade de produção de eletricidade a partir de fontes renováveis aumente no próximo ano para 4 500 gigawatts.

O diretor-executivo da Nexans, Christopher Guérin, acredita que vivemos uma “terceira revolução da infraestrutura elétrica na Europa”, segundo uma entrevista que deu ao Financial Times.

O mesmo se aplica ao resto do mundo. A Agência Internacional da Energia prevê que a capacidade de produção de eletricidade a partir de fontes renováveis aumente no próximo ano para 4 500 gigawatts, o equivalente à produção total de eletricidade da China e dos Estados Unidos em conjunto. Perante este cenário, impõe-se a questão: existem recursos geológicos suficientes para abastecer o mercado?

“As quantidades de minerais necessárias para a transição para energia limpa são apenas uma fração das reservas geológicas disponíveis e uma fração minúscula dos recursos geológicos totais estimados”, garante Seaver Wang, codiretor da equipa de clima e energia do Breakthrough Institute e um dos autores do estudo publicado no jornal Joule, que avaliou vários cenários possíveis. 

Igual panorama prevê o relatório da Energy Transitions Commission (ETC), onde se pode ler que mesmo na circunstância das reservas que se encontram aquém da procura cumulativa potencial – caso do cobre e níquel –, a sua expansão pode ser conseguida. 

Embora a humanidade possua, sem dúvida, a destreza intelectual e técnica para gerir os recursos de forma sustentável, frequentemente deparamo-nos com obstáculos na forma de falta de vontade política, interesses económicos enraizados e desafios socioeconómicos que travam a nossa capacidade de atuar de forma integral e comprometida”, diz Rosmel Rodríguez

Deficiência de cadeias de abastecimento 

Apesar da existência de reservas, a exponencial procura de materiais apresenta-se como um problema para o mercado. “De facto, o crescimento estimado da oferta de materiais essenciais é insuficiente para atender à procura em rápido crescimento até 2030. A médio e longo prazo, a mudança para tecnologias de próxima geração pode reduzir significativamente os requisitos de materiais primários, ajudando a fechar as lacunas de fornecimento até 2030”, admite Júlia Seixas, pró-reitora da Universidade NOVA de Lisboa e presidente do Departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente. 

Seaver Wang crê que se trata de um problema a curto prazo, tomando como exemplo a expansão do mercado de carros elétricos. “Vemos que a procura de materiais valiosos, como o polissilício e o lítio, pode atrair grandes investimentos em novas produções.”

As recentes rupturas de stock e consequente aumento dos preços da energia limpa relembram a necessidade de se “efetuar um planeamento antecipado da procura, diversificar fornecedores e investir na capacidade produtiva”, implementando “uma colaboração mais estreita entre empresas, governos e entidades internacionais”, acrescenta Rosmel Rodríguez, embaixador do Pacto Europeu para o Clima.

A procura de materiais para produção de baterias deverá explodir até 2050

É possível minimizar o lado sombrio da exploração mineira?

O caminho verde para se atingir uma economia global “net zero” apresenta graves ramificações sociais e ambientais adjacentes à exploração mineira. Deterioração de ecossistemas, poluição hídrica e atmosférica, relocação de comunidades, abusos dos direitos humanos e exploração infantil são algumas das consequências. Mas para Wang não existe um limbo entre os benefícios e os riscos. 

Segundo o estudo, apesar de as emissões resultantes da extração e transformação dos materiais para produção de energia renovável poderem atingir um total de 29 gigatoneladas de dióxido de carbono até 2050, as emissões são menores quando comparadas com as produzidas pela extração de combustíveis fósseis. Como?

“A resposta é simples: os minerais para as tecnologias de energia limpa podem produzir energia durante 30 anos, mas só precisam de ser extraídos uma vez. Em contraste, a energia fóssil produz emissões constantes a cada minuto, hora e ano.”, atesta Wang, lembrando que há tecnologia que permite diminuir o impacto da exploração de materiais. “Há técnicas mineiras muito avançadas, como a extração geotérmica direta de lítio e a recuperação de cobre in situ que podem mesmo produzir minerais sem necessidade de escavar uma mina convencional à superfície ou subterrânea”.

Os especialistas acreditam que a história da transição energética pode ser escrita seguindo as linhas da sustentabilidade, se essa for a vontade.

“É necessário realçar que a reciclagem de matérias-primas surge como uma solução promissora”, realça Rosmel Rodríguez. “Atualmente, a taxa de reciclagem varia consoante os materiais: alumínio 70%, aço 75%, cobre, níquel e prata 60%; cobalto 30%, grafite 1%, lítio 1%, havendo por isso muito potencial de melhoria.

Em 2050 existe o potencial de 80% do cobalto usado ser proveniente da reciclagem, grafite 70% e lítio 60%”, informa Júlia Seixas.

“Inovação, reciclagem e descarbonização levariam a emissões cumulativas da produção de materiais de energia limpa em cerca de metade das emissões anuais de combustíveis fósseis”, avança a investigadora.

Para o embaixador do Pacto Europeu para o Clima, é preciso criar regulamentação mais forte e “sistemas robustos de vigilância”. “É crucial reajustar o sistema financeiro global para que realce a sustentabilidade a longo prazo, abandonando a mentalidade de lucros rápidos e a curto prazo”, nota.

Os especialistas acreditam que a história da transição energética pode ser escrita seguindo as linhas da sustentabilidade, se essa for a vontade. “A história humana tem mostrado à exaustão que recursos financeiros, tecnológicos e humanos não são (quase) nunca um problema, desde que o objetivo para o uso responsável de materiais seja reconhecido como crucial pelos decisores políticos”, conclui Júlia Seixas. 

 

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