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Pureza Fleming

Tiago Lucena: “Compramos roupa descartável e de má qualidade, feita, por vezes, em condições duvidosas ou mesmo ilegais”

19 Apr 2024 - 09:00
Num mundo onde a moda e a consciência ambiental quase nunca andam de mãos dadas, a Shoe Clinic surge com um serviço inspirador. Foi em 2017 que a ideia começou a ganhar forma, e não tardou até que Tiago Lucena, co-fundador do projeto, iniciasse um novo caminho rumo a um consumo mais consciente. Do despontar da ideia até à expansão do negócio, passando pela reflexão sobre a indústria da moda e a sua relação com a sustentabilidade, esta conversa abrange vários temas essenciais para repensar o nosso impacto no ambiente e na sociedade.

Como e quando surgiu a ideia de criar a Shoe Clinic?

Em 2017 começámos a ver este serviço nos Estados Unidos e uma explosão de lojas no Brasil, África e Ásia. Começámos a fazer experiências e a desenvolver know-how. Nesse processo montámos um sistema próprio com diversas técnicas, recursos e truques para todo o tipo de materiais que compõem o calçado moderno. Depois, com alguma naturalidade, começámos a montar uma identidade e um modelo de marketing em torno do conceito, que amadureceu nos primeiros anos, quando a ideia passou de ser uma brincadeira até se tornar uma marca com um volume constante de calçado a chegar.

 

Como era a sua relação com a indústria da moda e quando é que teve a consciência do seu impacto no ambiente?  

Há muitos anos que o tema da sustentabilidade nos inspira, com consciência dos variados impactos menos mediatizados como a fast-fashion. Trata-se de um absoluto desperdício de recursos em busca de uma peça de roupa barata e pouco durável, algo longe da nossa filosofia de durabilidade e qualidade. Materiais sintéticos são produzidos com enormes impactos ambientais e vendidos como sustentáveis, quando na realidade duram algumas épocas e pouco mais. Mas o aparente preço barato atrai consumidores. O que nos faz sentido é que a roupa deveria ser feita com materiais naturais, de forma sustentável, com objetivo de qualidade e durabilidade. E tudo o mais local possível, e menos industrial. E com a capacidade de ser reparado, restaurado, reciclado ou reutilizado.

Depois de vários anos “a vender consumismo”, na área da publicidade, Tiago Lucena criou em 2017 a Shoe Clinic, uma oficina de restauro e limpeza de calçado e acessórios, que tem com a sustentabilidade como azimute.

Qual é que foi a primeira reação das pessoas, no geral?

Ainda estamos numa fase de evangelização de mercado, a maioria das pessoas ainda desconhece que este tipo de solução existe. Recebemos muito calçado que ia literalmente para o lixo e os clientes ficam sempre surpreendidos com os resultados. A primeira reação costuma ser sempre ultra-positiva e mesmo alguma estupefação com os resultados!

 

Entretanto, expandiram o negócio para o segmento das carteiras, certo?

Sim, desde o momento em que começámos a sentir-nos confortáveis com o couro, pele e camurça, começámos a ver que as técnicas são similares em acessórios como malas e cintos, carteiras e até braceletes de relógios. Apesar do foco ser o calçado, também temos em paralelo clientes para malas, tanto em limpeza como restauro e reparação. Sobretudo em malas de luxo, que é um serviço cada vez mais procurado.

 

Em média, quantos pares de sapatos — entre outros acessórios — recebem por semana?

Chegamos a receber mais de 100 pares por semana. Felizmente temos conseguido manter um crescimento equilibrado e constante, sem explosões ou picos que não permitam capacidade de resposta. A nossa grande aposta tem sido num crescimento gradual e sempre sustentado, com base num contínuo aperfeiçoamento de processos para resultados cada vez melhores e clientes sempre satisfeitos.

“Um consumo mais consciente é útil tanto para salvar o planeta como para poupar algum dinheiro com compras mais racionais”.

Trabalhou em Publicidade, uma indústria que se dedica a fazer as pessoas comprarem coisas de que não precisam. Como é que se deu a “mudança de consciência”?

Foi precisamente por andar anos envolvido na “venda” de consumismo que percebi que o grande problema em termos de sustentabilidade é mesmo a nossa atitude, no geral, mediante coisas básicas como comer, viajar, comprar roupa, etc. Coisas que realizamos sem plena consciência do impacto. Não é preciso entrar em extremismos, mas é preciso um consumo mais consciente e equilibrado, e voltar aos antigos ofícios e hábitos como reparar móveis, eletrodomésticos, roupa e calçado.

 

Esteve, também, envolvido noutros projetos na área da sustentabilidade. Fale-nos um bocadinho acerca do seu percurso nesta área específica.

Dentro da área da sustentabilidade já desenvolvi alguns outros projetos, como o blog A Senhora do Monte, no qual passamos outras facetas da nossa forma de ver a sustentabilidade, através da nossa vivência no mundo rural e mais próximo da natureza. Também já fiz alguma consultoria em design de permacultura, mediação imobiliária para projetos off-grid e consultoria em comunicação e marketing para diversas PME.

 

Qual é a sua opinião acerca da indústria fast-fashion?

Uma vez li algures que uma pessoa nos Estados Unidos comprava oito peças de roupa por ano nos anos 80 e agora 40 peças (os dados eram de 2018, por aí). Compramos roupa descartável, de má qualidade e acabamento, feita, por vezes, em condições duvidosas ou mesmo ilegais, para obtermos o ‘look fashion do momento’ da forma mais barata. Com materiais sintéticos, poluentes, e processos industriais pouco amigos do ambiente. Isto não faz sentido nenhum. Antigamente tínhamos roupa de qualidade, feita com bons materiais, que durava. Tem de haver uma mudança de atitude, mais exigente com qualidade e durabilidade e até com orgulho no facto de ainda sermos grandes produtores de roupa e acessórios. Eu prefiro ter menos mas quando compro uma peça de roupa – sobretudo calçado – sou cada vez mais exigente com os materiais e qualidade do produto. Prefiro pagar mais em algo bem feito que vai durar uma vida, que gastar pouco dinheiro em coisas que duram pouco tempo. E, se possível, dou sempre preferência ao produto nacional.

 

A Shoe Clinic recebe em média 100 pares de sapatos por semana, que são depois devolvidos como novos aos clientes.

Acredita que a sociedade está mais recetiva a este tipo de serviços de reparação e reciclagem das peças? Ou ainda há um longo caminho a percorrer?

Vemos que cresce uma consciência ambiental e parte dos nossos clientes chegam com essa preocupação. É já uma tendência na nossa sociedade, que também é alimentada pela perda de poder de compra. No nosso caso, vemos que as pessoas procuram mais é a questão estética: voltar ao look original o mais possível. Se a resposta for boa ficam rendidas ao nosso serviço, e voltam. A sustentabilidade tem de chegar ao consumidor de uma forma positiva e que lhe traga um benefício. É o que tentamos fazer. Mas ao mesmo tempo há ainda um longo caminho a percorrer, sobretudo em relembrar coisas que perdemos há relativamente pouco tempo: reconhecer materiais e qualidade, comprar com racionalidade e reparar o que temos. Um consumo mais consciente é útil tanto para salvar o planeta como para poupar algum dinheiro com compras mais racionais.

 

E qual é o destino se, por outro lado, a sociedade consumista prevalecer? 

A sustentabilidade deveria ser, antes de mais, uma oportunidade para um maior equilíbrio nas pessoas, que nasce num consumo mais consciente. “Como foi isto feito? Com que materiais? Por quem?” São perguntas que devíamos fazer a diversas coisas que compramos. Com isso tanto ganhamos mais consciência dos impactos desta economia global como consumimos menos, mas melhor. E daremos mais valor ao que temos, e ao que compramos. Infelizmente ainda vivemos no auge de uma sociedade ultra consumista e materialista, mas vários sinais demonstram que o cidadão médio está mais consciente e tenta fazer as escolhas mais ecológicas quando tem oportunidade.

 

Se pudesse definir a Shoe Clinic num só conceito, qual seria?

Dar valor ao que temos.