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Pureza Fleming

Susana Silvério: “O concelho de Odemira é conhecido pelas grandes assimetrias entre litoral e interior”

10 May 2024 - 09:00
Odemira é hoje, das 10h30 às 17h, palco da primeira Mostra de Escolas do Plano Nacional das Artes (PNA) & Amigos, um evento que reunirá alunos, professores, artistas e a comunidade em geral. Durante este dia, as ruas da vila alentejana transformam-se em palco para workshops, exposições, espetáculos, música e muito mais, promovendo a arte-educação e fortalecendo os laços entre a escola e a comunidade. O Green eFact conversou com Susana Silvério, coordenadora intermunicipal do PNA e responsável por liderar esta mostra, que promete dar vida à cultura como agente de transformação e espaço de união e aprendizagem.

Quando foi criada a Mostra CHÃO e com que intuito?

A vontade de realizar esta Mostra CHÃO surgiu numa partilha quase casual no final do primeiro período do presente ano letivo. Tudo começou com um diálogo alargado entre professores e artistas residentes dos Agrupamento de Escolas que integram a rede do Plano Nacional das Artes neste concelho e que, de Saboia a Vila Nova de Milfontes, passando por Colos e Odemira, acreditam no modo de questionamento da arte. Foi assim que começou a germinar esta ideia, como acontece com muitas coisas que nos apaixonam e que vingam mal tocam na terra.

A nossa forma de olhar para o mundo está intimamente ligada à nossa forma de o entender. Dito isto, estamos conscientes da importância da cultura e das artes como dínamos da coesão territorial, bem como do seu poder educativo. Não havia como não receber este desafio de braços abertos.

 

Porquê Odemira?

O óbvio a dizer é que os quatro agrupamentos de escolas responsáveis por congeminar este projeto e que tenho o privilégio de acompanhar, na qualidade de Coordenadora Intermunicipal do PNA, se situam no concelho de Odemira. Não é, todavia, alheia a esta localização a confluência de vontades que permitiram fazer acontecer este evento de uma forma colaborativa, vinculando-o ao seu contexto territorial, social e patrimonial. Há que reconhecer ainda o mérito à Câmara Municipal de Odemira, comprometida com a valorização do seu património, a promoção de iniciativas de âmbito cultural e artístico, dentro e fora das escolas, e ainda o fortalecimento da relação Escola-Comunidade.

 

O que tem o concelho de Odemira, que faz deste “um Alentejo Singular”, como se lê por aí?

Vários especialistas nacionais e internacionais das áreas da conservação, biologia e geologia, têm enfatizado a grande importância do património natural desta região. Assim, não há como não enaltecer, em toda a sua legítima dimensão, a diversidade do património geológico e biológico do concelho de Odemira. Aqui embarca-se numa viagem por milhões de anos de história do planeta, materializada em cada rocha e presente na impressionante diversidade de habitats e espécies de fauna e flora. Aliás, diria que diversidade é o refrão por excelência do concelho de Odemira, um território que pela sua relevância constitui o chão de múltiplos encontros que importa valorizar.

Por outro lado, o concelho de Odemira, o maior de Portugal, sabemo-lo bem, também é conhecido por uma realidade composta por grandes assimetrias entre litoral e interior, problemas graves de gestão de recursos hídricos, perda de biodiversidade derivada de investimentos em explorações com base em monoculturas, percentagem elevada de êxodo humano e necessidade de integração de novos habitantes oriundos de outros países. Grande parte dos novos residentes são estrangeiros, muitos deles asiáticos, que trabalham em explorações agrícolas. Assim, o gesto de acolher e integrar estas pessoas tem provado ser um desafio, mas também uma oportunidade, numa região cada vez mais desertificada.

Para além do chão que se pisa por aqui e do horizonte que o olhar colhe, entre o verde e o azul liquefeito, diria que a singularidade de Odemira são as suas gentes. Do início ao fim, acredito que são as pessoas que fazem a diferença. A sua garra, vontade de fazer acontecer, sempre mais e melhor. Fazer diferente. Neste sentido, reconheço e admiro neste território o ímpeto de promover uma conceção de cidadania cultural baseada no pluralismo: nesse reconhecimento e valorização das diferenças.

 

Para Susana Silvério, “o gesto de acolher e integrar” os novos habitantes que têm chegado a Odemira, “tem provado ser um desafio, mas também uma oportunidade, numa região cada vez mais desertificada”:

Que tipo de público esperam ter no CHÃO? 

Pegando em Zeca Afonso pela mão, só me ocorre responder: “seja bem-vindo quem vier por bem”.  Portanto, contamos com alunos, professores, famílias, artistas, amigos e até com incautos transeuntes apanhados no remanso da vida. Este é um CHÃO que deseja celebrar, num tropel de alegria, a cultura como o espaço de encontro. A arte e a educação, frutos de uma mesma árvore, como campo produtor de conhecimento e de múltiplos processos reflexivos, criativos, e, sobretudo, capaz de desvelar o que há de intrinsecamente humano nos mais diversos espaços e tempos. Esperamos um público feliz e inquieto por sublinhar a relevância social da cultura e a sua potência para edificar uma comunidade. Pessoas que confiam que a cultura tem um enorme potencial para promover sociedades mais justas, mais igualitárias e mais democráticas. Este CHÃO entrega-se a nós e aos outros, sonhando transformar a instituição escola numa extituição: aberta e confiante em si e nos outros. A cultura é uma empreitada em curso que ganha corpo nessa busca de um chão comum para todos nós.

 

E quantas pessoas?

Perto de 400 pessoas (alunos, professores e artistas residentes) estão garantidos. De resto, convidamos toda a comunidade de residentes e amigos a juntarem- se a nós. Quantas pessoas? Pois não sabemos ao certo, o que está claro é que serão conduzidas com muita arte e engenho pelas ruas de Odemira.

 

Como é que vai acontecer este evento em termos de espaço?

Esta Mostra vai decorrer um pouco por toda a vila de Odemira entre as 10 horas e as 17. Tem início marcado no cineteatro, mas a partir daí a arte seguirá solta pelas ruas ao encontro de pessoas que escolhem livremente os seus apeadeiros. Será distribuído um programa com um mapa para facilitar a cartografia do dia. De resto, é fluir e cultivar experiências em comunidade.

 

Que tipo de atividades o público irá encontrar nesta mostra?

Os Agrupamentos de Escolas do concelho de Odemira que integram a rede PNA (AE de Colos, AE de Odemira, AE de Vila Nova de Milfontes e AE de Saboia) e amigos (nomeadamente: Centro de Artes e Ofícios – CRIAR, Lavrar O Mar – Cooperativa Cultural , Sopa dos Artistas – Associação Local de Artistas Plásticos e Teatro Só) em conjunto, traçaram um percurso que atravessa Odemira de lés a lés: workshops dinamizados por alunos, professores e artistas, exposições de alunos, espetáculos de alunos e também de professores, conversas informais com artistas residentes, projeção de curtas-metragens realizadas por alunos e realizadores convidados, dança solta, leituras expressivas de textos originais, cruzamentos vários, música a rodos e arte sobre rodas. Em suma, arte-educação com o pé no CHÃO.

“Odemira tem problemas graves de gestão de recursos hídricos, perda de biodiversidade derivada de investimentos em explorações com base em monoculturas, percentagem elevada de êxodo humano e necessidade de integração de novos habitantes oriundos de outros países”.

Quer partilhar com os leitores do Green e-Fact alguns dos “desafios sustentáveis” que irão propor?

Atrevo-me a dizer que a Mostra CHÃO é no seu âmago, antes e depois, um desafio sustentável. É nossa preocupação pugnar por uma educação igualitária e a educação ambiental é essencial na construção de uma cidadania que se quer alicerçada na cooperação e sentido de pertença.

Entre os diferentes momentos, atividades e pessoas que urge conhecer ao longo deste dia, posso referir dois projetos, ambos enquadrados no Plano Nacional das Artes, que a artista plástica Mariana Dias Coutinho levou a cabo no Agrupamento de Escolas de Saboia.

O projecto “OÁSIS”, que tem como objetivo a criação, no recinto da escola, de hortas biológicas, onde a arte e a ciência se cruzam, assim como a sabedoria local, desenvolvendo um espírito de sustentabilidade ambiental dentro da comunidade escolar. As hortas, como é consabido, têm uma valiosa componente pedagógica, pois familiarizam-nos com as plantas e as suas famílias, com os ciclos de plantação, fertilização e rega.

Por outro lado, têm ainda uma forte componente simbólica, uma vez que as hortas permitem criar uma ligação à terra, de cuidado e retribuição, experimentando, de forma direta, a existência de ciclos de vida e de sustentabilidade no qual todos temos um papel a desempenhar. As hortas do projecto OÁSIS permitem explorar conteúdos pedagógicos transversais a diversas áreas curriculares: Ciências da Natureza, Português, Matemática, Estudo do Meio, e Cidadania do 1º, 2º e 3º ciclos do Ensino Básico.

Já o projeto “Construindo um ecossistema co-imaginado”, por seu turno, foi criado e desenvolvido em colaboração com a comunidade escolar. Através de metodologias relacionais e de aproximação ao contexto local, este processo possibilitou a experimentação de modos de participação ativa através da cocriação de uma paisagem imaginada. A paisagem como categoria do Ser, onde é possível a reflexão e construção individual e coletiva, onde é possível cruzar disciplinas, desde o pensamento filosófico ao científico.

E no que respeita as diferentes áreas das artes e da educação, que tipo de apostas irão ser feitas por parte da organização?

A educação e as artes devem promover espaços de experimentação, para discutirmos e debatermos temas e ideias, para criarmos e crescermos em conjunto. É convicção do Plano Nacional das Artes que através das artes, das atividades culturais, do acesso ao património material e imaterial, é possível ampliar a quantidade e qualidade de vivências e competências de todos nós. Esta é a aposta: sublinhar a mensagem de que a escola é também um polo cultural e reconhecer que a imaginação e a criatividade são consubstanciais à aprendizagem.

“As hortas permitem criar uma ligação à terra, de cuidado e retribuição, experimentando, de forma direta, a existência de ciclos de vida e de sustentabilidade no qual todos temos um papel a desempenhar”.

Qual é a importância de um evento destes para Portugal?

Acredito que a melhor forma de enfrentar os tempos, com as suas incertezas, fragilidades, e as nossas tão humanas inquietações, é estabelecer diálogos múltiplos que nos permitam compreender a diferença, os outros, o mundo para além do nosso metro de chão. Pensar e sentir para além do imediato, do arrepio do susto, da ignorância ou de repetições ocas. Este dia permite-nos mergulhar de corpo inteiro em carreiros que cruzam as artes e a educação com um norte do que há de humano em cada um de nós, e isso convoca a responsabilidade por todos os seres vivos do planeta. Cumulativamente, esta Mostra observa e enaltece a criação e as múltiplas aprendizagens que estes jovens do concelho de Odemira, acompanhados por professores e artistas, desenvolveram.

 

E para o planeta, em geral?

Respondo com uma citação de Sophia de Mello Breyner Andresen que consta, aliás, em cartazes do Plano Nacional das Artes afixados de norte a sul do país: “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar”. Pelo exemplo, todos os dias, um minuto de cada vez, vamos transformando o mundo nesse lugar em que queremos viver.

Num tempo marcado por tantas divisões e ruído, precisamos de lugares de escuta e sobretudo de espaços de encontro. Esta é a intenção da semente.