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Miguel Judas

Sebástien Kopp: “É possível fazer as coisas de forma mais justa e sustentável”

16 Dec 2023 - 10:10
Antigo ativista da Greenpeace, o francês Sebástien Kopp criou em 2005, com o amigo de infância François-Ghislain Morillion, a marca de calçado desportivo Veja. O objetivo era criar sapatilhas de forma diferente, com base em projetos sociais, justiça económica e materiais ecológicos – a lona e os atacadores são feitos de algodão orgânico proveniente do Brasil (onde os sapatos são também produzidos) e as solas com borracha da Amazónia. Atualmente, a Veja é um verdadeiro fenómeno de popularidade, mas os princípios mantêm-se intactos, como explica nesta entrevista.

Como surgiu a Veja?

Começou há 19 anos, com o meu melhor amigo, o François, quando ambos criámos uma ONG para perceber como eram as condições de trabalho nas fábricas asiáticas, usadas pelas grandes marcas internacionais. O que vimos no terreno foi uma imensa desilusão para nós, pois as condições reais são mascaradas de modo a cumprir um caderno de encargos que depois não corresponde à realidade. E toda a gente sabe disso e ninguém faz nada. As grandes empresas têm o poder de mudar o mundo, mas simplesmente não o querem fazer. Decidimos ir para o terreno de mochila às costas para fazer tudo de início. A ideia nem sequer era fazer uma marca de sapatos sustentável, mas sim ir atrás da realidade, para a perceber melhor. Quando decidimos avançar escolhemos a palavra portuguesa Veja, como um apelo aos clientes, para que olhassem mais além dos sapatos.

 

E por onde começaram essa busca?

Fomos procurar os materiais na fonte, o algodão e a borracha, de forma a substituir o plástico por borracha natural, que encontrámos na Amazónia. Não tínhamos dinheiro, não falávamos português e não percebíamos nada de ténis, tinha tudo para dar errado, mas no final de 2004 fizemos 5 mil pares, graças a um empréstimo do Credit Coop, um banco sustentável que apoia projetos ambientais, que esgotaram em poucas semanas. A segunda coleção teve um sucesso igual e a partir daí foi sempre assim, o que nos permitiu crescer de forma sustentada, sem recurso a empréstimos ou financiamentos, focando-nos apenas nas pessoas, nos fornecedores e nas fábricas com quem trabalhamos, em vez de estarmos apenas preocupados com o dinheiro.

 

Mas o lucro não é um objetivo para a Veja?

Claro que sim, queremos ganhar dinheiro mas não corremos atrás dele. Somos muito prudentes, não almejamos ser os maiores, mas sim os melhores no que fazemos e que as pessoas se sintam felizes a usar os nossos sapatos. Como não temos investidores externos, isso dá-nos a liberdade para fazermos o nosso caminho como acharmos melhor. Não temos dívidas e mesmo assim todos os dias aparece alguém a tentar comprar-nos, mas preferimos focar-nos mais em crescer de forma sustentada e não apenas em ter mais lucro, como ensina o capitalismo. No fundo a Veja é uma crítica ao capitalismo moderno, pois o nosso sucesso prova que é possível fazer as coisas de uma forma mais justa e sustentável para todos os envolvidos no processo. E a nível mais pessoal a Veja é também uma terapia, pois seria uma pessoa muito mais zangada com o mundo se não tivesse criado esta marca.

 

Nunca teve mesmo a tentação de vender?

Vender para quê? A empresa é bem gerida, dá lucro, todos nós temos um bom salário, que, não sendo milionário, dá para viver muito bem. No meu caso tenho uma boa casa em Paris, os meus filhos andam na escola e não têm falta de nada, o que necessito mais? Para quê vender por 100 ou 200 milhões de euros algo que corre bem? O que vou fazer com esse dinheiro, um projeto melhor que a Veja? Não me parece, isto é o melhor que posso fazer. Também não vou comprar um Rolls Royce, porque me sinto muito mais feliz a andar de bicicleta ou de metro, como faço agora.

Sebástien Kopp, à esquerda, com o amigo e sócio François-Ghislain, com quem criou, em 2005, a marca de calçado desportivo Veja (foto: Ludovic Carême)

A Veja é a prova que o capitalismo também pode ter um lado social?

Social, não sei, mas que pode ser feito de um modo diferente, sim, sem dúvida. Com mais calma e maior consciência. O problema do capitalismo, hoje, são os padrões demasiado loucos, essa corrida pelo lucro em curto tempo. E também o facto de os acionistas estarem bastante distantes da realidade das pessoas. Mas o maior problema é mesmo o capitalismo financeiro, que apenas procura somar dinheiro a mais dinheiro, esquecendo o ser humano e o simples prazer de trabalhar para construir algo.

 

Como se consegue criar uma marca como a Veja, que pensa e funciona a longo prazo, num mundo cada vez mais imediato?

Com tempo. Em vez de corrermos, preferimos caminhar. Como vamos mais devagar, conseguimos evitar os obstáculos com maior facilidade. Não é uma revolução, há muita gente que pensa assim. Ainda temos os mesmos fornecedores de há 20 anos, por exemplo, apesar de mais alguns se terem juntado, entretanto. E isso acontece porque o custo nunca foi o nosso parâmetro mais importante.

 

E qual é o parâmetro mais importante?

Que todos os fornecedores e colaboradores da Veja vivam bem. No caso dos produtores brasileiros, que tenham dinheiro para reinvestir em coisas tão simples como uma cisterna para terem água potável todos os dias. Os relacionamentos de longo prazo criam confiança para criar algo. E cria fidelidade de parte a parte. Já houve muitas tentativas de outras marcas, em aliciar os nossos fornecedores, mas eles não trabalham com a Veja, trabalham com o François e o Sebástian. Por exemplo, um dos nossos objetivos iniciais foi reconhecer a importância dos seringueiros, que têm um trabalho vital na Amazónia e conhecem a floresta como ninguém, mas sempre foi muito desvalorizado.

 

Porque escolheram o Brasil para produzir os sapatos?

Por ser o único país com algodão, borracha e fábricas que respeitavam os direitos dos trabalhadores, que apenas trabalhavam 40 horas semanais, ao contrário da Ásia, onde se trabalha o dobro. Os primeiros mandatos do presidente Lula representaram uma revolução a esse nível, vimos isso no terreno, especialmente no Nordeste, onde vamos buscar a borracha. Em apenas dez anos, a vida das pessoas melhorou realmente. Mas depois veio Bolsonaro e foi um desastre, a vários níveis. Trabalhamos atualmente com cerca de 300 produtores no Brasil e outros tantos no Peru. A grande diferença desta marca é estar no terreno e conhecer a realidade, porque não sabíamos nada sobre esta indústria quando começámos. Atualmente temos uma equipa em permanência na Amazónia, outra no Peru e enquanto a maior parte das empresas desta área compra a intermediários, acabando por encarecer o preço e diminuir a margem de lucro dos produtores, nós pagamos 40 por cento da produção antes da colheita a um preço previamente combinado, que não depende das variações do mercado.

“O maior problema é mesmo o capitalismo financeiro, que apenas procura somar dinheiro a mais dinheiro, esquecendo o ser humano e o simples prazer de trabalhar para construir algo.”

Isso também foge um pouco à lógica do capitalismo, que tenta sempre baixar ao máximo os custos de produção, concorda?

Sim, mas apesar de pagarmos um preço mais alto sentimos que estamos a fazer a nossa parte, tanto em termos sociais como ambientais, pois o nosso negócio também tem uma parte agro-ecológica. Acreditamos na agricultura regenerativa para poupar os solos e fomentamo-la junto dos nossos fornecedores. Ninguém acreditava neste negócio no início e agora já começa a ser encarado por muita gente como uma solução.

 

Acredita que o sucesso da Veja também se deve a essa postura?

Não creio. Aliás, tenho a perfeita noção que a maioria dos nossos clientes não faz ideia disto e apenas compra os ténis porque gosta deles. Mas que se lixe, não o fazemos para ter o reconhecimento de ninguém, mas porque acreditamos que é o mais correto.

 

Mas isso não é algo que deveria ser melhor comunicado?

Não fazemos anúncios, mas a informação está toda disponível para quem quiser saber como funcionamos. Ao contrário da maior parte das marcas, que passaram a investir mais na comunicação que nos produtos em si, porque a narrativa passou a ser mais importante que a própria realidade, nós preferimos investir na produção. O nosso desafio sempre foi esse, mudar as regras do jogo em cada um dos passos do processo, até porque o greenwash, de que tanto se fala agora, já é um conceito antigo. É por isso que estamos muito mais focados na nossa transparência e não tanto em comunicá-la. Quando se diz que fazemos uma coisa e na realidade fazemos o contrário, mais tarde ou mais cedo isso acaba por se virar contra nós. Tenho a noção que fomos muito longe, literalmente até ao interior da Amazónia e houve uma altura em que sentia necessidade de dizer isso ao mundo, mas entretanto passou-me e passei a focar-me naquilo que realmente quero fazer. E repito, como não temos investidores externos, isso permite-nos manter intacto o amor e a alma em tudo o que fazemos.

Um dos projetos mais recentes da marca é precisamente em Portugal, onde este ano já produziu “mais de 150 mil pares de sapatos”, para um novo conceito chamado Made in Europe, Sold in Europe

E que projetos tem a Veja para o futuro?

As parcerias de longo prazo necessitam de criar raízes, não se pode estar sempre a mudar. Um dos nossos projetos mais recentes é precisamente em Portugal, onde este ano já produzimos mais de 150 mil pares de sapatos para um novo conceito chamado Made in Europe, Sold in Europe. Também não o comunicámos, mas não é segredo nenhum.

 

Porquê em Portugal?

Por causa da língua, como também se fala português tudo se torna mais fácil, ajuda-nos a sentir em casa. Mas também pela qualidade da produção, que é reconhecida em todo o mundo.