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Miguel Judas

Rodrigo Serra: “Foi uma sorte o lince ibérico ter escapado à extinção”

24 Mar 2024 - 10:00
O Programa de Conservação ex situ do Lince Ibérico está integrado no Plano de Ação para a Conservação desta espécie, assumido entre Espanha e Portugal. Por cá foi entretanto desenvolvido um plano de ação de conservação próprio, implementado no terreno pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), em coordenação com o programa Espanhol, gerido a partir do Centro Nacional de Reprodução do Lince Ibérico em Silves, que trabalha no melhoramento do habitat para futuras reintroduções. Falámos com o coordenador do programa ex-situ e diretor do centro, Rodrigo Serra, para conhecer melhor este trabalho e também um pouco do seu percurso.

Quando e como se começou a interessar pelo Lince Ibérico?

Quase desde que me lembro. A minha mãe é médica (ainda para mais, obstetra – eu trabalho em reprodução) e o meu pai, engenheiro, passou horas comigo a ver documentários de vida selvagem desde que me lembro. Sou muito agradecido por isso e desta mistura meti na cabeça que queria tratar do lince-ibérico. Muito por culpa também da Liga para a Proteção da Natureza – sem a campanha da Reserva Natural da Serra da Malcata e o jornal Liberne sempre lá em casa as coisas poderiam ter sido muito diferentes. Tenho um poster original da campanha emoldurado em casa, oferta do dr. Pedro Sarmento [n. d. r. técnico do ICNF responsável pelo projeto de monitorização dos linces].

 

É veterinário de formação, com mestrado em animais selvagens e trabalhou com grandes felinos em África, era já o destino a indicar-lhe o caminho que acabou por tomar ou já era um objetivo?

Não acredito em destino, acredito em planos. O meu plano era ajudar com o lince-ibérico desde que me lembro, mas nunca quis afunilar as minhas escolhas até porque há mais vida para lá de uma espécie e as opções profissionais nesta carreira são poucas ou nulas. Tenho preferência por predadores e, dentro desses, por felinos. Acabei por abandonar um trabalho em África no Botswana com leões africanos e deixar um doutoramento por acabar em Zurique na minha área preferida, epidemiologia, para me dedicar ao topo da carreira de qualquer conservacionista especializado em felinos: a conservação do lince-ibérico, a espécie de felino mais ameaçada do mundo. O trabalho mais difícil de todos na conservação de felinos. Mas seria e serei feliz a conservar qualquer outra espécie, porque o que sempre me moveu foi dar voz àqueles que não a têm mesmo. Agora que sou adulto defendo que precisamos nós dessas espécies e dos ecossistemas em que vivem para a sobrevivência da nossa espécie, Homo sapiens sapiens. E sou igualmente feliz com esse desígnio.

Filho de uma médica obstetra e de um engenheiro com quem passava horas a ver documen tários sobre vida selvagem, desde pequeno que Rodrigo Serra alimentava o desejo de ajudar a salvar o lince ibérico.

Quando começou a trabalhar em concreto na conservação do lince-ibérico e como estava a situação em Portugal nessa altura?

Em 2002 entrei em contacto com o dr. Pedro Sarmento, coordenador da conservação da espécie em Portugal, e a partir daí fui trabalhando com ele nas áreas em que o podia ajudar nos projetos em curso, com o tempo disponível, e planeando o futuro com a sua equipa enquanto aprendia com eles e com os espanhóis. Na altura, ambos pensávamos que a única forma de Portugal começar a assumir a sua responsabilidade na conservação do lince-ibérico seria primeiro pela via da reprodução em cativeiro, uma vez que não tínhamos já populações selvagens. Depois de termos linces-ibéricos de volta ao país por essa via, nascimentos de linces para soltar mais tarde em zonas apropriadas, notícias e comunicação sobre a espécie etc. seria mais fácil arrancar com projetos de reintrodução a larga escala e ter linces livres em populações minimamente sustentáveis em Portugal. E assim foi. Quando comecei a colaborar com o ICN [atual ICNF] não havia populações de lince em Portugal e em Espanha havia menos de 100 linces identificados divididos por duas populações.

 

Como surge o projeto de reprodução em Cativeiro? Era um projeto sobre o qual havia muitas dúvidas, certo?

Havia imensas dúvidas. Existem documentos públicos que o comprovam e as dúvidas não eram nacionais ou europeias apenas. Havia uma grande desconfiança sobre projetos de reprodução em cativeiro para reintrodução na natureza, pela forma como eram feitos e também pelas muito baixas taxas de êxito que tinham. Se no ano 2000 Portugal, Espanha e Conselho Europeu recomendavam nos documentos estratégicos a reprodução em cativeiro e havia um centro de reprodução preparado para acolher animais desde 1992 em Doñana, nunca se juntaram machos e fêmeas na mesma instalação antes de 2004.

Não foi por uma questão de investimento – as condições físicas já existiam – foi por opção técnica e política que a reprodução em cativeiro não avançou mais cedo. E avançou porque, em 2003, ao concluir-se o primeiro censo direto na Península Ibérica, toda a gente se apercebeu de que havia menos de 100 linces-ibéricos no Mundo e era mesmo preciso fazer mais “qualquer coisa”. Essa qualquer coisa foi uma rede contra a extinção no campo, com animais em cativeiro, como seguro contra essa mesma extinção como defendido desde 1999. E acabou por ser essa rede a fonte que permitiu uma parte substancial da recuperação da espécie, particularmente em Portugal e comunidades autónomas de Espanha que não a Andaluzia, através da libertação de animais nascidos em cativeiro.

Só em 2005 houve reprodução em cativeiro pela primeira vez, e aí começa na realidade o programa de reprodução ex situ da espécie, com a primeira ninhada nascida a 28 de março de 2005. Foi uma sorte a espécie ter escapado à extinção porque era claramente tarde demais. Ainda hoje sofremos as consequências desse atraso pela via da falta de diversidade genética da espécie. Mas lá vamos escapando.

Em 2003 havia menos de 100 linces-ibéricos no Mundo e passados apenas 20 anos já existiam 1668 linces na Península Ibérica, 261 dos quais em Portugal.

O trabalho conjunto com Espanha foi essencial nesse sentido? Como é que este se desenvolveu?

O trabalho sem Espanha tinha sido impossível. Sem a Comissão Europeia também. Quem declarou a obrigatoriedade da construção do CNRLI foi a Comissão Europeia através do processo da Barragem de Odelouca, como medida de sobrecompensação da sua construção em terrenos da Rede Natura 2000. Sem Espanha e os acordos assinados entre ambos os países para a conservação da espécie – incluindo a cedência a Portugal de exemplares de lince por parte do Reino de Espanha – teria sido impossível cumprir essa medida, uma vez que todos os linces vieram da Andaluzia, que tinha todos os linces identificados na altura. Se Espanha e a Andaluzia não acreditassem em nós e não vissem a oportunidade estratégica de nos envolver na conservação do lince, provavelmente teríamos tido problemas com o processo da barragem e só uns quantos linces por aí perdidos agora – como acontece nas comunidades autónomas de Espanha não participantes nos projetos LIFE+ de reintrodução do lince. Podem por lá passar, mas não há populações instaladas. O trabalho com Espanha e suas comunidades autónomas – Andaluzia, depois Castilla-La Mancha e Extremadura – foi sempre muito estreito e coordenado. Temos muito a agradecer-lhes. E temos feito a nossa parte com brio também.

 

Qual a razão para o centro de reprodução ter sido instalado no Algarve?

Portugal sempre se comprometeu em acordos e documentos estratégicos, desde 1999, a investir na reprodução em cativeiro. Tivemos versões de planos de ação para aprovar em 2004, 2005, etc., para o efeito. Mas só tivemos plano de ação para a conservação da espécie aprovado e publicado em Diário da República já o CNRLI estava em construção, em 2008. E o CNRLI foi construído muito à conta da pressão internacional. Ora, se o processo que obrigou à construção do CNRLI foi o da construção da Barragem de Odelouca no Algarve, é mais ou menos evidente porque foi construído aí.

“Havia uma grande desconfiança sobre projetos de reprodução em cativeiro para reintrodução na natureza”.

No início perderam-se muitas crias, como viveu esses tempos?

Com dedicação, entendendo que os resultados não seriam imediatos e planeando para ter estabilidade de gestão nesses primeiros três anos, e com muita teimosia e determinação. Foram tempos difíceis, mas não foram uma surpresa. Faltou alguma sorte em alguns momentos, mas nunca duvidei da nossa equipa. Os resultados provam que tínhamos razão.

 

Mas logo em seguida o centro começa a ter bastante sucesso. O que provocou essa mudança?

A idade, maturidade e experiência das fêmeas, a adaptação em geral dos animais às infraestruturas, o crescimento de vegetação nos cercados de reprodução e do enriquecimento ambiental em geral, e a experiência da equipa. E muito suor e algumas lágrimas.

 

Como está hoje a situação do lince em Portugal e na Península Ibérica?

O lince estará em breve a descer de categoria de ameaça para vulnerável, sabendo nós que em 2022 tínhamos já 1668 linces na Península Ibérica, 261 em Portugal. Até pelo início de novas zonas de reintrodução sabemos que este número deverá continuar a aumentar. No entanto ainda nos falta descer dois níveis de conservação até poder chegar a uma situação favorável de conservação para a espécie. É preciso não esquecer que esta é uma espécie predadora que depende de espécies como o coelho-bravo, que tem sofrido muito nas últimas décadas para reproduzir-se e sobreviver. E temos também de ter em conta a pobre genética existente: o lince-ibérico é a espécie geneticamente mais pobre alguma vez sequenciada. Estamos no bom caminho, mas ainda falta uma década e qualquer coisa. Se tudo correr bem.

“A idade, maturidade e experiência das fêmeas”, bem como “a adaptação em geral dos animais às infraestruturas”, são algumas das razões apontadas por Rodrigo Serra para o sucesso do Centro Nacional de Reprodução de Lince Ibérico

 

Quais são as regiões onde se concentram mais linces?

No centro sul da Península Ibérica, do norte da Andaluzia até ao Algarve, e de Doñana até Toledo.

 

É um projeto para continuar?

Deveria continuar até cumprirmos as nossas obrigações com a Comissão Europeia, não só no que diz respeito à Barragem de Odelouca, como também no que diz respeito ao cumprimento com a Convenção de Berna e com o estatuto de conservação favorável para a espécie. Mas isso não depende de mim.