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Sara Pinho

Graça Fonseca: “a arte e a criatividade sempre foram muito importantes nas grandes mudanças da humanidade”

8 Apr 2024 - 10:00
Graça Fonseca, co-fundadora e CEO da agência Because Impacts e ex-ministra da Cultura, fala sobre o que a levou a criar um projeto para reduzir a pegada ambiental dos eventos, sobre justiça global e ativismo climático e sobre como podemos enfrentar as alterações climáticas nos próximos anos, também através da arte.

No ano passado, escreveu numa crónica para o jornal Público sobre a expedição climática que fez à Gronelândia e conta que quando sai do governo, em 2022, prossegue a ideia de fundar um projeto próprio, que cause impacto social e ambiental. Quando é que se apercebeu de que queria fundar um projeto próprio? 

Na verdade, sempre tive essa ideia. Sou licenciada em Direito e depois fiz o doutoramento em Sociologia. A minha carreira começa na Universidade de Coimbra, onde trabalhei na área da justiça, no Observatório da Justiça, que existia na altura. Desde o início que o tema do impacto social, ou seja, dos direitos das pessoas, da justiça, da igualdade e de que maneira é que as organizações contribuem para vivermos num mundo melhor, esteve sempre muito presente. Aliás, o meu doutoramento é sobre discriminação no sistema judicial. Ao longo deste percurso, fui sempre trabalhando ou tendo projetos nestas áreas de impacto, que depois se começaram a cruzar com o tema do ambiente. A certa altura, também na Câmara de Lisboa. Portanto, tinha essa ideia de um dia construir um projeto, aproveitando a minha experiência e as competências que ao longo dos anos fui desenvolvendo, e fazê-lo de uma forma autónoma e livre, quando saísse do governo. Não queria ir para nenhuma grande organização, não queria ir para nenhuma instituição pública nem para nenhuma grande empresa. Foi um risco grande que corri, mas, ainda assim, tinha a possibilidade de o fazer da forma que acredito que pode ser feita. Ao longo dos anos, sempre procurei inovar ou fazer diferente, o que nem sempre é fácil. Nem sempre as organizações estão preparadas para a mudança, nem sequer as pessoas, por vezes. Ter um projeto próprio tem esse lado positivo, porque aí podemos arriscar e tentar fazer diferente. E depois é uma questão de ver se o projeto ganha vida. Mas pelo menos temos essa liberdade.

 

Que projeto é o Because Impacts?

É uma agência que eu co-criei com um sócio. Hoje, somos quatro pessoas a trabalhar aqui. Em 2022, quando decidi sair [do governo] e pôr em prática a “segunda temporada” da minha vida, uma das áreas em que eu sempre quis desenvolver projetos foi a área de impacto social e impacto ambiental. Durante alguns anos, talvez desde 2016, comecei a ligar-me a alguns projetos e a algumas fundações, nomeadamente norte-americanas, na área da economia de impacto, a qual começou a surgir nessa altura, e comecei a acompanhar alguns projetos e tendências. A agência procura, por um lado, ser uma agência pequena de consultoria no sentido clássico. Ou seja, temos um projeto estratégico, de construção e desenho de uma estratégia de sustentabilidade para reduzir a pegada e aumentar os impactos positivos das organizações, nas áreas do retalho alimentar, de medição de impacto e de comunicação. Desde o início, a nossa ideia foi usar a comunicação como uma dimensão final de todo um caminho que fizemos com a organização. Depois temos uma segunda área, que, na verdade, tem mais que ver com o meu background, ligada à inovação, em que tentamos fazer aquilo que ainda não foi feito.

 

O que pretendem fazer na área de inovação?

Temos estado a identificar áreas, por exemplo, na gestão de resíduos, para procurar melhores resultados. Através da nossa avaliação – e existem avaliações objetivas em que Portugal precisa de melhorar, em muito, as metas sobre resíduos –, chegou o tempo de tentar soluções diferentes daquelas que têm sido utilizadas no passado. Basicamente, construímos parcerias com as entidades. Neste caso, temos parcerias com a Escola [Nacional] de Saúde Pública e com a Escola de IMS [Information Management School] da Universidade NOVA.

 

O que nos pode dizer sobre os projetos que têm em mãos com a Universidade NOVA?

Com a Escola de Saúde Pública, estamos a fazer trabalhos na área das ciências comportamentais. Um dos temas que sempre me interessou muito é: se percebermos melhor o nosso comportamento, conseguimos comunicar melhor e encontrar soluções melhores para problemas que ainda não foram resolvidos. Por exemplo, a forma como gerimos os resíduos e separamos embalagens. O trabalho que temos planeado com a Escola de Saúde Pública, com a equipa da professora Marta Marques, é, primeiro, estudar o comportamento das pessoas na gestão dos resíduos, na separação ou no descarte de alguns resíduos; depois, iremos fazer um trabalho mais criativo e de comunicação, direcionado ao problema. Há muitos problemas a resolver na área das alterações climáticas e da economia circular e o que nós procuramos fazer é construir boas parcerias com Universidades ou com empresas e agências para construir soluções que sejam uma mais-valia.

A ex-ministra da Cultura criou há dois anos com um sócio a Because Impacts, uma empresa de consultoria na área da sustentabilidade que tem como objetivo reduzir a pegada ambiental e aumentar a pegada social de grandes eventos socais, culturrais ou desportivos.

A Because Impacts está a trabalhar numa intervenção estratégica para reduzir a pegada ambiental e aumentar a pegada social dos eventos, como referiu. Mas, em termos práticos, como é que isto se faz?

Chamámos-lhe “climate squad”, assente na ideia de ir buscar cientistas, criativos, designers, humoristas. É este grupo que consegue apresentar uma solução integrada. Na parte dos eventos, começámos a trabalhar com os Chefs on Fire, em Cascais, já há um ano. Na base, desenhámos um projeto que tem, basicamente, dois objetivos. Por um lado, ter em atenção que os eventos – culturais, desportivos, etc. – têm um enorme impacto junto das pessoas, por, tipicamente, envolverem milhões de pessoas a nível global. Por outro lado, são lugares onde partilhamos um conjunto de valores e de gostos. No fundo, é quase uma tribo. Estes lugares têm um enorme potencial para envolver as pessoas relativamente àquilo que é preciso fazer, para podermos reduzir, coletivamente, a pegada de carbono. Os eventos são um local muito importante para isto, mas são também acontecimentos com uma pegada enorme. Um festival ou um grande jogo de futebol tem uma pegada gigante. É importante ter esta consciência e trabalhar para reduzir a pegada do evento.

 

Por onde se começa para medir a pegada ambiental de um evento?

A primeira etapa passou por medir a pegada de carbono do evento na sua base – medindo sistemas com o da água, da energia e da mobilidade, para perceber como é que as pessoas se deslocam para o evento, e percebendo se há iniciativas para reduzir desperdício alimentar, caso [os eventos] incluam a componente da alimentação. Há várias camadas que nos dizem qual é a pegada de carbono daquele evento e definimos depois um conjunto de objetivos para alcançar daqui a cinco anos. A cada ano, há iniciativas que são implementadas para reduzir a pegada e alcançar esse objetivo final, sendo que os resultados são monitorizados de ano em ano.

“Um festival ou um grande jogo de futebol tem uma pegada gigante. É importante ter esta consciência e trabalhar para reduzir a pegada do evento”.

Foi a emergência climática que moldou a vontade de criar um projeto que se desdobra na parte social e na ambiental?

Também foi. Aquilo que sempre me movimentou foi o tema da mudança; como é que transformamos a realidade, por onde passamos, e como é que conseguimos mudar para melhor. E, de facto, o tema da justiça climática é a simbiose do pilar social e do pilar ambiental. Desde 2016 que me começou a interessar muito – altura em que comecei a participar nalguns fóruns internacionais e projetos que na altura estavam a emergir e, hoje em dia, sim, acho que é o grande desafio das nossas vidas e para mim também é o grande desafio dos próximos anos.

 

Pegando na justiça climática, e sendo as ciências sociais a sua estrutura de formação, como é que olha para a dinâmica dos movimentos sociais ativistas pela justiça climática em Portugal? 

Sou uma grande entusiasta da comunidade e da sociedade civil; sempre fui. E acho que Portugal precisava de ter uma sociedade civil mais forte, mais dinâmica e mais interventiva, porque acho que uma sociedade civil mais interventiva força a economia e a governação à mudança e a serem melhores, em condições de democracia liberal. Mas a sociedade civil, tal como sempre entendi, é muito importante. Acho que é muito importante que haja um movimento climático dinâmico e ativo, para forçar determinadas mudanças e transformações que tardam muito em aparecer. A sociedade civil e os ativistas têm esse papel. Acho também que há formas mais eficazes de o fazer do que outras, porque o tema climático é um tema que, para muitas pessoas, é importante, mas ainda está longe; quando na verdade não está. Quando sentimos que algo está longe, não nos preocupamos com esse “lá longe”. Há formas de ativismo ambiental que são mais eficazes do que outras para trazer mais pessoas e gerar mais empatia com a necessidade de fazer algo. O que me preocupa é perceber o que é que é mais eficaz. Algumas iniciativas que eu vejo não são eficazes – aliás, têm demonstrado que não o são.

 

Como quais?

Aquelas que representam um grande constrangimento na vida das pessoas. Não estou a falar de uma manifestação, porque nas manifestações as pessoas percebem que há a dimensão da sociedade civil, mas interromper uma via rápida naturalmente é algo que vai deixar as pessoas não do lado de quem o faz, mas contra quem o faz. Portanto, parece-me que há formas mais eficazes. O tema do ativismo através do sistema judicial, como aquele processo que seis jovens adolescentes interpuseram contra alguns Estados, é uma iniciativa muito eficaz para chamar a atenção, para envolver as pessoas para falar sobre o tema. Os grandes processos judiciais estão a crescer imenso hoje em dia, a justiça climática está a crescer imenso a nível global. Portanto, há formas mais eficazes. Deve procurar-se sempre aquilo que pode trazer mais pessoas para a nossa causa.

Graça Fonseca defende formas de ativismo ambiental mais eficazes, com capacidade de “trazer mais pessoas e gerar mais empatia com a necessidade de fazer algo”.

Como é que podemos atuar para haver mudança social?

No Reino Unido, por exemplo, no ano passado, os movimentos climáticos deixaram de fazer determinado tipo de iniciativas e passaram a concentrar-se em manifestações de grande dimensão. É pensar: “Como é que eu trago mais pessoas para a minha causa?”. Há uma larga quantidade de pessoas, cerca de 60%, que percebe que algo de anormal está a acontecer e que tudo é diferente daquilo de que se recordava. E percebe que alguma coisa está a mudar e até gostava de perceber o que é que pode fazer. Mas, na verdade, não sabe. Há todo um conjunto de dúvidas que as pessoas têm, porque comunicar ciência climática é muito complexo. Na nossa perspetiva, é preciso trazer as ciências climática e comportamental e juntá-las com artistas, humoristas e contadores de histórias, procurando ter, desta forma, várias pessoas com diferentes competências no mesmo projeto e tentar, com isso, contar melhor a história sobre o que é isto, por que é que está a acontecer e como é que nós, comunidade, podemos contribuir de melhor forma. Acho que é preciso contar melhor a história para as pessoas perceberem que também é com elas e que não é só com os outros. As dimensões do conteúdo, do humor, do jornalismo, são fundamentais para haver uma linguagem mais clara, acessível e compreensível. O nosso cérebro funciona com histórias.

 

Sabemos que a ciência climática tem mais de 100 anos. Repetimos que não podemos continuar a ignorá-la, mas a falta de discussão sobre o ambiente nos debates para as últimas eleições legislativas foi um bom exemplo da importância que lhe estamos a dar. Será que é preciso irmos todos em expedição ao Ártico para ouvir o som do Planeta a aquecer, como escreve na sua crónica, para acelerar a nossa ação?

Além dos projetos de que falámos, há uma outra área em que estamos a trabalhar que tem que ver com a experiência. E a experiência é muito importante para nos fazer ver de forma diferente. Um dos projetos que estamos a desenvolver este ano tem que ver com a minha experiência no Ártico. Claro que as pessoas que estavam ali não precisavam de ser convencidas sobre a importância de atuarmos, de fazermos algo. A diferença é que, quando estamos ali, percebemos o nível de interconexão e interligação em que vivemos, porque aquilo que acontece a milhares de quilómetros de distância de Lisboa, por exemplo, tem impacto direto em Lisboa. Cada som que se ouve de mais um pedaço de gelo a cair tem impacto na subida do nível médio da água do mar. Sendo Portugal um país banhado por água, naturalmente que isso tem um enorme impacto na nossa vida. Portanto, o que a experiência nos dá é isso. Mesmo a milhares de quilómetros de distância, o que está ali a acontecer tem que ver connosco. E vice-versa. Não sei se é preciso irmos todos ao Ártico. Se calhar não é preciso, considerando que as alterações climáticas estão à nossa porta. Tanto temos 30 graus num dia, como no dia seguinte temos uma tempestade tropical e a seguir temos falta de água. Acho que as pessoas começam realmente a perceber que este é um tema que está mais presente do que achamos.

É preciso trazer as ciências climática e comportamental e juntá-las com artistas, humoristas e contadores de histórias (…) é preciso contar melhor a história para as pessoas perceberem que também é com elas e que não é só com os outros. As dimensões do conteúdo, do humor, do jornalismo, são fundamentais para haver uma linguagem mais clara, acessível e compreensível.

Até que ponto é possível dissociar o cariz ambiental do social, hoje em dia, ao criar um projeto destes cujo objetivo é ter impacto?

Na minha opinião, não é possível. Para mim, a razão principal é a seguinte: quando falamos no impacto das alterações climáticas, primeiro, o impacto é bastante injusto, porque os países no mundo que mais sofrem com o impacto das alterações climáticas são os que menos contribuem para elas. Desde aí, é um tema de justiça global. Os países mais ameaçados pelas alterações climáticas não são os países onde estamos a viver. É por isso que as grandes discussões que se têm feito em fóruns internacionais [se centram] na ideia de investir nos países que mais estão a sofrer com o impacto das alterações climáticas, nomeadamente em África, para que também seja possível mitigar o efeito das alterações climáticas. É um tema de justiça entre povos. Depois, há um segundo tema que tem que ver com a justiça económica, porque, naturalmente, nem todos temos as mesmas condições para conduzir um carro elétrico ou para comprar um determinado tipo de produtos ou ter um determinado tipo de condições de energia. Isto tem que ser ponderado no plano social. Além disso, outro tema que também me diz bastante é o da justiça de género: nos países mais afetados pelas alterações climáticas, as mulheres e as crianças são particularmente afetadas. Isto para falarmos sobre a justiça climática. Por outro lado, do ponto de vista do que as empresas e as organizações têm que fazer para responder ao tema, hoje em dia há uma regulação europeia muito exigente. Por isso é que se fala muito do ESG – Environmental, Social, and Corporate Governance. A regulação, hoje em dia, faz com o que o pilar ambiental e o social já tenham uma grande relevância naquilo que as empresas têm que fazer. No pilar ‘S’ – o social – as pessoas já têm obrigações em matéria da sua organização, de trabalhadores, de direitos humanos, do impacto na comunidade, etc. Hoje em dia, não é possível, na minha opinião, fazer um trabalho que procure ideias e soluções melhores para fazer face às alterações climáticas sem ter o pilar ‘E’ e ‘S’ quase simbioticamente unidos.

 

Fala também da complementaridade entre áreas distintas, como a finança climática, a sustentabilidade, a moda, a alimentação, a comunicação, enfim. Transpondo isto para o governo, o que é que nos pode dizer da complementaridade das várias áreas relativamente ao ambiente, através da experiência que teve enquanto ministra da Cultura? 

Nós tivemos muitas interações com o Ministério do Ambiente em diferentes momentos. Precisamente com esta ideia de como é que conseguimos, trabalhando em conjunto, criar mais consciencialização e envolver mais as pessoas sobre as necessidades e o desafio que as alterações climáticas nos colocam, através da arte, da criatividade e do património. Tivemos alguns projetos na área da biodiversidade e das florestas, como uma iniciativa de apoio a projetos artísticos em determinados locais do país que alertavam, por exemplo, para a importância da floresta. Nesta altura, criou-se na Direção-Geral das Artes uma linha que tinha que ver com ambiente e arte. Procurámos fazer coisas pequenas, porque não era o nosso foco, mas essa foi uma das áreas do governo com quem dialogámos bastante, com base na ideia de juntar diferentes pessoas com diferentes formas de pensar e de criar para conseguir chegar melhor às outras pessoas. A arte e a criatividade sempre foram muito importantes nas grandes mudanças da humanidade, nas mudanças civilizacionais e políticas. Acho que a arte e a criatividade têm um papel muito importante, naquilo que diz respeito à mudança climática e à forma como as comunidades e as empresas têm que fazer aquilo que lhes compete.