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Teresa Lencastre

Gabriela Albergaria: “A natureza tornou-se um lugar de conforto e respeito”

14 Jun 2024 - 09:00
A natureza é a grande protagonista na obra de Gabriela Albergaria, artista plástica de renome internacional, natural de Vale de Cambra e atualmente radicada na Bélgica. Em entrevista ao Green eFact, fala sobre a origem desta ligação, a par da dimensão social do seu trabalho. Refletir sobre a intervenção do ser humano no mundo natural é um dos propósitos da sua obra, que se estende por várias disciplinas.

Na sua biografia, lê-se que o seu trabalho envolve um território: a natureza. De onde surge esta ligação e como é que a manifesta?

Vou fazer um recuo muito grande. Nasci e fui criada entre o campo e a cidade. Numa casa tradicional do Norte, jardim na frente e campo de subsistência atrás. Maçãs, batatas, feijões, peras, cerejas, pêssegos, uvas, galinhas, coelhos, um porco… Sempre com a noção de que o que comemos vem de algum lugar, sempre em contacto com a natureza, a terra e o solo.

A natureza tornou-se um lugar de conforto desde infância e um lugar de respeito. Introduzi este tema, ou melhor, esta preocupação quando já tinha acabado o curso de Belas Artes no Porto. Já tinha muitas preocupações ecológicas no meu dia a dia, mas só mais tarde as introduzi no trabalho. Primeiro, através de fotos que fazia de maquetes de jardins. Criava ambientes de suspense, como se algo apocalíptico fosse acontecer. Recriava tempestades através das maquetes e das fotos. Introduzia factos e memórias.

Mais tarde, estudei a história dos jardins, as estufas e métodos de manipular as plantas. E essa matéria de conhecimento integrou o trabalho de várias maneiras. Através de desenho ou peças tridimensionais.

 

A sua arte tem um objetivo didático ou de consciencialização para as questões ambientais?

Sim, sim, não consigo conceber estas peças sem pensar que vão ter uma qualquer utilidade.

A natureza é a grande fonte de inspiração da obra de Gabriela Albergaria, que tem como propósito propor uma reflexão sobre a intervenção do ser humano no mundo natural. (foto: Leo Ramos)

Há uma ou mais obras que destaque no seu percurso? Quais e porquê? 

Há uma peça tridimensional que realizei pela primeira vez em 2001 em Berlim. Essa peça era feita com troncos e ramos de árvore, usando o recurso de falsos enxertos para unir as várias partes dos ramos. Esta peça funcionou quase como um sketch para outra, que mais tarde realizei no Project Room do antigo CCB com curadoria de Delfim Sardo. Estas peças das árvores com enxertos referem-se à manipulação da natureza levada a cabo pelo homem. Usam ramos que eu uno, recorrendo a cortes que se assemelham aos cortes dos enxertos das árvores de frutos, e parafusos e anilhas, da linguagem do mobiliário de jardim na Alemanha.

Outra peça são as fotos/desenho que tenho feito como série desde há uns anos. Andar nos jardins e nas florestas é uma prática que eu tenho e sempre que estou num lugar que me parece já ter visitado, tiro uma foto. Já no estúdio, reenquadro se for preciso e completo essa imagem com desenho. No fundo, a ideia surge da consciência de que a paisagem que vemos nunca seria assim se não fosse a emigração e migração das espécies. Eu refiro-me muitas vezes a essa série como a “colonização das espécies”.

Outra peça que segue esta lógica é uma peça de terra batida intercalada com restos de ramos e folhas. O que se vê é um enorme paralelepípedo feito de terra batida. O nome é “Couche Sourde” e encontrei uma referência a esta técnica de jardinagem num livro muito antigo numa biblioteca em Paris. Esta técnica usa o húmus e o calor que ele exala, para fazer germinar sementes. Encontrei apenas desenhos e uma pequena descrição. Apercebi-me que sem a descoberta desta técnica a nossa paisagem europeia não seria a mesma.

“A noção de que não fazemos parte da natureza foi um grande desentendimento da renascença. Essa noção orientou-nos até hoje e por isso existe tanta relutância em entender a natureza como uma entidade com direitos próprios e a respeitar”.

As alterações climáticas estão presentes no seu trabalho? De que forma?

Em várias peças refiro o perigo das alterações climáticas e da ação nociva e abusiva do homem em relação à natureza. Uma delas é também em terra e argila. Chama-se “pinch pinch pinch” e tem uma base de terra batida com mais ou menos 25 centímetros de altura. Conceptualmente refere-se à camada de terra fértil que existe no mundo e que está em vias de desaparecer devido às alterações climáticas e ao abuso da exploração agrícola, principalmente das monoculturas.

Em cima dessa base de terra, estão colocados cubos em argila de mais ou menos 2 centímetros de lado e que envolvem sementes de feijões não alterados geneticamente. Esta peça refere-se à permacultura, que é uma técnica de cultivo de bens alimentares menos agressiva do que as tradicionais. Coexiste com o processo da natureza e a sua regeneração, porque uma das coisas que faz é usar o que nós chamamos de “ervas daninhas” para fertilizar o campo.

 

A mitigação da crise climática é cada vez mais urgente. Sente-se de alguma forma responsável por contribuir para essa causa, através da sua arte? 

Desde há muitos anos que me preocupo com o caminho que a relação homem/natureza tem tomado. O enorme desrespeito e falta de noção de que os recursos são finitos, sempre me espantou. O espírito empreendedor do homem, que no seu pior momento se chama ambição nociva e também avareza, tem levado a uma híper exploração dos recursos naturais a um ponto que temos de criar meios de reparação.

Mas isto são produtos culturais. A noção de que não fazemos parte da natureza foi um grande desentendimento da renascença. Essa noção orientou-nos até hoje e por isso existe tanta relutância em entender a natureza como uma entidade com direitos próprios e a respeitar. As tendências da antropologia atual são bem diferentes.

Uma das obras mais conhecidas de Gabriela Albergaria chama-se “Pinch, Pinch, Pinch” e é Chama-se “pinch pinch pinch” e conceptualmente refere-se à camada de terra fértil que existe no mundo e está em vias de desaparecer devido às alterações climáticas e ao abuso da exploração agrícola. (foto: Bruno Lopes)

O seu trabalho mudou a sua relação com a natureza? Como?

O trabalho acrescentou uma dimensão social ao que eu já intuía.

 

Onde é que os portugueses podem atualmente ver as suas obras?

Eu sou representada pela galeria Vera Cortês em Portugal. É através dela que eu comercializo o trabalho e aí podem ter acesso a algumas peças. Neste momento, tenho exposição em Bellinzona, na Suíça, no Museo Villa Dei Cedri. As minhas próximas exposições são noutros países, mas vou também ter um projeto em Leiria, num novo museu que vai abrir no final do ano.