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Miguel Judas

Catarina Miguel Martins: “Acreditamos no poder transformador de duas rodas montadas numa estrutura de metal”

14 Feb 2024 - 10:00
Além de ser um meio de transporte sustentável, poderá a bicicleta afirmar-se também como um veículo que ultrapassa barreiras económicas e reduz as desigualdades sociais? O projeto Ciclopes – Achata Colinas está a provar que sim. Com sede no Bairro Padre Cruz, em Lisboa, já se espalhou por toda a capital, sempre com foco nos Bairros de Intervenção Prioritária e “impactou mais de 2200 pessoas através de 228 atividades”. O objetivo passa agora por expandi-lo a outros locais do país, como explica nesta entrevista Catarina Miguel Martins, responsável pela cooperativa Drive Impact, a entidade dinamizadora do Ciclopes.

O que é o projeto Ciclopes e como surgiu?

O Ciclopes surgiu da minha experiência depois de 6 anos a desenvolver um produto tecnológico de partilha de bicicletas, dentro de um consórcio internacional. Resolvi mudar de campo, e da alta tecnologia passar para mecânica simples e para uma escala mais humana, criando este projeto de apoio à mobilidade suave de base comunitária, que possa ser mantido pelas pessoas. No Ciclopes acreditamos no poder transformador de duas rodas montadas numa estrutura de metal e, numa cidade conhecida pelas suas sete colinas, achatamos montanhas e reduzimos as diferenças.

 

De que forma é que a bicicleta se pode tornar, também, um veículo para a inclusão, integração e superação social?

As cidades estão cheias de obstáculos e estes bairros são como ilhas, com ruas inclinadas e caminhos de montanha. Mas, se para superar algumas dificuldades geográficas basta ter boas pernas, já para superar declives sociais e o fosso entre ricos e pobres, é preciso mais do que músculo. E aí acreditamos que a bicicleta pode ajudar e dar um empurrão. O Ciclopes propõe promover mudanças que possam desencadear a liberdade de cada indivíduo para encontrar a solução que se adequa à sua situação particular, de forma orgânica, aumentando o acesso a ferramentas que contribuam para a integração.

Catarina Miguel Martins, a dinamizadora do Projeto Ciclopes – Achata Colinas, quer tornar a bicicleta num “veículo de fuga para uma vida melhor”

Porquê as bicicletas?

A bicicleta pode servir de veículo de fuga para uma vida melhor porque aumenta o raio de acesso e a autonomia da população em termos de emprego, educação e inclusão social com o resto da cidade, destruindo barreiras tanto geográficas como sociológicas e democratizando assim o acesso a recursos. Para algumas populações a bicicleta ainda é coisa de pobre e ter um carro é que é símbolo de status: O Ciclopes mostra que a bicicleta pode ser cool e trendy, um veículo atrativo e cheio de estilo, e uma real possibilidade de deslocação.

 

Quais os tipo de atividades que organizam e a quem se destinam?

O Ciclopes é um programa multifacetado de promoção da mobilidade suave, veiculando a oportunidade de ter bicicleta, saber como andar e mantê-la. Para isso realizamos vários tipos de atividades, como aulas, workshops, passeios e festas, destinados a toda a população mas com um foco nos bairros de intervenção prioritária, com indicadores socioeconómicos mais baixos. Até agora o Ciclopes tem sido mais procurado para ações com crianças e jovens. Fizemos intervenções em escolas durante o período letivo e nas férias, dentro e fora dos estabelecimentos de ensino. Também em parceria com associações comunitária,s de forma recorrente ou em eventos pontuais, realizámos ações enquadradas em festas abertas à população, e também estamos abertos com a nossa atividade recorrente na cicloficina central do Bairro Padre Cruz. As nossas atividades e intervenções estão descritas no website www.ciclopes.pt, onde todos podem conhecer o projeto com maior profundidade.

Só no Bairro Padre Cruz, onde está instalada a cicloficina central, o projeto Ciclopes já conta com mais de 200 crianças e jovens inscritos. (foto de Cristiana Morais)

Como tem sido a receção no terreno às iniciativas do Projeto Ciclopes?

As atividades com as escolas foram muito bem recebidas, cerca de metade das crianças do jardim-de-infância e escola primária não sabiam andar de bicicleta e depois de uma intervenção, que dura em média 4 horas por turma, praticamente todas ficaram a saber andar de bicicleta. Quando esta era uma atividade semanal, ela tornou-se a “recompensa” de bom comportamento. No Bairro Padre Cruz, onde construímos a nossa cicloficina central, já temos mais de 200 crianças e jovens inscritos, entre os 8 os 17 anos.

 

O que fazem lá?

Com a nossa permanência, percebemos que este é um ponto de abrigo onde estas crianças e jovens vêm também falar, conviver e brincar. A maior parte deles estão já capazes de arranjar a sua bicicleta e muitos até trouxeram bicicletas que estavam estragadas e desaproveitadas, para as começar a reconstruir e ensinar aos colegas como o fazer. Por exemplo, temos um rapaz que já vai construir a sua quarta bicicleta. O Ciclopes é muito mais do que bicicletas, tem a ver com a resistência à frustração, com o espírito crítico para resolver um problema mecânico, com a resiliência para aprender, com uma relação positiva com o corpo e a imagem, com respeito pelas regras e pela comunidade… É um processo contínuo.

O projeto lançou recentemente um manifesto em formato de vídeo inspirador com produção da el hey films e banda sonora produzida pelos Bateu Matou.

 

Como funciona, em termos práticos, a cicloficina central no Bairro Padre Cruz?

A cicloficina central está aberta à população duas tardes por semana, onde fazemos empréstimos de bicicleta e ajudamos a fazer reparações nas nossas bicicletas ou nas próprias. É o centro de um trabalho comunitário continuado, onde experimentámos várias coisas e aprendemos a fazer cada vez melhor. É também o espaço de armazenamento para uma centena de bicicletas, como muitas ferramentas e peças! Quando abrimos a primeira vez tivemos um miúdo e passados 3 meses chegámos a ter tardes com 80 empréstimos de bicicletas e filas à porta, duas horas antes da abertura, porque os miúdos queriam ser os primeiros e poderem levantar a sua bicicleta preferida. Os nossos monitores e mecânicos na cicloficina são homens jovens, personal trainers, graffiters… além de também saberem sacar cavalinhos, representam um masculino positivo, equilibrado e presente, que se preocupa e fala de forma direta com os miúdos. Ou seja, colocam regras e levam-nos a arranjar as bicicletas que estragam, a esperar a vez, a entregar a bicicleta a horas. Depois de mais de 2500 empréstimos de bicicletas na cicloficina, temos zero furtos, ou seja, o Ciclopes passou a fazer parte bairro!

 

Pensam alargar o projeto a outros locais do país?

Experimentámos várias atividades nos nossos dois anos de existência. O modelo que temos agora, com monitores formados, materiais e bicicletas, uma marca de estilo de vida criada e procedimentos de logística e comunicação, está pronto para ser replicado noutras zonas do país. O nosso desejo é que se multipliquem os bairros em Portugal onde as pessoas conseguem aprender a andar de bicicleta e a arranjá-la, com o apoio de mecânicos, peças e ferramentas. E que isso traga mais autonomia e liberdade à população, sendo um veículo de fuga para uma vida melhor. A intenção é que estas atividades sejam também adotadas pelos residentes, que depois de as frequentarem e terem o sistema montado, as consigam manter com o nosso apoio cada vez mais pontual. Estamos desejosos para replicar este conceito e portanto totalmente abertos a convites e parcerias.