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Miguel Judas

Aldina Duarte: “É urgente a transição de uma civilização económica para uma civilização ecológica”

15 Apr 2024 - 09:00
A fadista estreia-se esta quarta-feira em nome próprio no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, com um concerto servirá para apresentar o novo álbum Metade-Metade, escrito por Capicua e apresentado pela própria Aldina Duarte como uma declaração de amor à natureza, mas também uma crítica à “visão antropocêntrica” e “cientificamente desfasada” da sociedade em que vivemos.

Pode-se afirmar que este será o seu álbum mais arriscado, pelo modo como explora tantos e tão novos territórios musicais e poéticos?

Acho que o CD2 do Romance(s), o álbum duplo que fiz com o Pedro Gonçalves como produtor musical é mais ousado musicalmente, ou seja, o ambiente sonoro e, consequentemente, a minha interpretação pode dizer-se que estraçalharam a sonoridade do fado, ao ponto de não haver, sequer, a guitarra e a viola. Neste Metade-Metade é mais o novo léxico, os temas inéditos e a extrema musicalidade da palavra e na construção do verso resultante da escrita da Capicua, que acrescentam, de facto, a linguagem do repertório fadista em geral e do meu. Há uma declaração de amor a uma árvore – Araucária – o próprio nome da árvore da minha vida; um fado político sobre a pobreza – Majestade [25ABRIL]; a natureza ser central ao longo de todo o disco, o que contradiz a visão antropocêntrica, a meu ver desfasada, cientificamente falando; a liberdade e a poesia, enquanto alimento na evolução humana; não haver o tema do amor romântico. Todas estas diferenças acrescentam poética e tematicamente, provocando uma renovação natural. Sendo que o fado chega aos dias de hoje, com a pujança que conhecemos, porque a renovação dentro da tradição é uma constante na sua longa história musical e poética.

Outra novidade é a importância do silêncio nos arranjos para que a música da palavra, a poesia verso a verso e a própria mensagem se ampliem. Ou seja, a minha voz, a escolha dos instrumentos, os duetos voz / instrumento, tudo se constrói à volta do poema, digo poema porque acho que a letrista e rapper Capicua se tornou poetisa ao aprender a escrever para as melodias do fado tradicional.

 

Como afirmou e pela primeira vez canta também o amor de uma forma mais universal e menos romântica: o amor pela natureza e pelas pessoas, através de uma apologia da ecologia, da liberdade e da igualdade, da denúncia do preconceito e da pobreza. Concorda que será, porventura, o seu trabalho mais político?

Intencionalmente político, sim. Ainda que tenha temas conscientemente politizados em discos anteriores, Princesa Prometida é um fado feminista, e Refúgio é um alerta para o problema dos refugiados, ambos escritos por mim. E há também o Ela, um poema sobre a força feminina, escrito pelo Manel Cruz. Mas, sim, este disco é o mais político conceptualmente.

“A inconsciência política nas questões climáticas que comprometem o futuro da humanidade”, é um dos temas abordados no novo disco de Aldina Duarte, escrito por Capicua (Foto: Isabel Pinto).

O que a levou a seguir este caminho? Foi algo premeditado ou surgiu devido à escrita da Capicua?

Surgiu do encontro de duas mulheres com grandes afinidades políticas e artísticas. Logo que começámos as oficinas de escrita para fado, a pedido da Capicua, como condição para aceitar o meu pedido para que me escrevesse um disco inteiro, percebemos de imediato que a sua escrita levaria o meu fado para novos temas. E, a meio do caminho da aprendizagem, surgiu uma nova linguagem e um novo estilo poético.

 

Como surgiu esta parceria com a Capicua?

Eu admirava o trabalho e a personalidade artística da Capicua, identificava-me humanamente, achei que uma parceria artística com alguém assim só poderia ser enriquecedora. E eu, para gravar um disco, tenho de querer dizer alguma coisa às pessoas, e as minhas grandes questões eram o aumento da pobreza e a perda de liberdade que isso implica para as classes mais desfavorecidas, o domínio do mercado das artes descartáveis, a inconsciência política nas questões climáticas que comprometem o futuro da humanidade… não podia ter encontrado melhor parceira criativa.

 

“É incompreensível que uma espécie que é capaz de ir à Lua, operar um feto no útero materno ou escrever os Lusíadas destrua estupidamente um planeta ao ponto de se autodestruir.”

Num tempo de trincheiras cada vez mais definidas, é importante os artistas assumirem posições através da sua obra?

Importante é um artista dar o seu melhor, isto é, servir autenticamente a sua arte. Um grande cantor, músico ou pintor, ao exercerem o seu talento serão sempre interventivos, e as suas obras uma contribuição que pode tornar a humanidade mais sensível e pensante, ou não, sem se posicionarem publicamente nas questões politicas ou sociais. E um artista se achar que a sua arte deve ser o retrato das suas convicções políticas ou de qualquer tipo de ativismo social, como fiz questão neste meu disco, ou que deve aproveitar o seu espaço mediático para defender as suas convicções, como tenho feito desde o primeiro disco, acho igualmente legítimo. Se um artista, como tantas pessoas, não tem na vida uma consciência política não a terá artisticamente.

 

Não tem receio de alienar eventuais fãs devido a isso?

No dia em que isso me passar pela cabeça, na criação artística do que quer que seja, paro na hora, e parto para uma reflexão muito, muito, profunda sobre o que quero realmente fazer da minha arte e na vida.

 

Aldina Duarte estreia-se no Coliseu dos Recreios com um concerto intimista, em que parte do público vai partilhar o palco com a artista.

Como é a sua relação com temas como o ambiente, a ecologia e a natureza num sentido mais lato?

Acho que é urgententíssimo começarmos a trabalhar na transição de uma civilização económica para uma civilização ecológica, porque senão a espécie humana acaba, e não o planeta como se ouve dizer. É incompreensível que uma espécie que é capaz de ir à Lua, operar um feto no útero materno ou escrever os Lusíadas destrua estupidamente um planeta ao ponto de se autodestruir. Parece que muitos dos humanos cegaram com a ilusão do poder do dinheiro, mesmo sabendo que não irá ficarão por cá mais que cem anos, na melhor das hipóteses.