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Teresa Lencastre

Qual o estranho motivo que leva as orcas ibéricas a ‘atacar’ embarcações?

5 Jul 2024 - 09:00
Portugal e Espanha são desde 2020 palco de um fenómeno único no mundo e que continua por explicar: interações de orcas com barcos, que em perto de 20% dos casos resultam em danos graves para as embarcações. O Green eFact foi procurar respostas junto de uma portuguesa que testemunhou recentemente um ‘ataque’ (não é por acaso que o escrevemos com aspas) e de um especialista em orcas ibéricas.

Filipa Peixoto, de 34 anos, é natural de Viana do Castelo e trabalha na indústria do yachting desde 2019. “Uma das razões que me faz seguir este estilo de vida e trabalho é a minha paixão pelo mar e a vela”, conta. Este ano, a 6 de junho, arrancou de Cascais numa embarcação privada, um veleiro, na qual trabalha desde 2020.

O plano era fazer várias paragens ao longo da viagem, em Gibraltar, Palma de Maiorca e Saint Tropez. Mas o percurso foi subitamente interrompido por um grupo de orcas logo no segundo dia, pelas 18h40 locais, 5 milhas náuticas a oeste de Tarifa.

“Estavam a navegar ao nosso lado, umas quatro, descendo e emergindo constantemente. Por alguns momentos, houve uma sensação de que estavam a ficar para trás e que não tinham qualquer interesse na embarcação. Até que, de repente, os lemes começam a mover-se sozinhos e descontroladamente”, descreve.

“A primeira coisa que fizemos foi descer a genoa (a vela situada à proa), pois o risco de danos e colapso da vela eram muito grandes, desligamos o auto piloto para não o colocar sobre mais tensão, começámos a fazer o registo de tudo e aguardámos até que terminasse. Durou cerca de 15 a 20 minutos”, recorda.

A portuguesa Filipa Peixoto fazia parte da tripulação de uma embarcação que foi “atacada” por orcas no início do mês passado, ao largo de Tarifa, no sul de Espanha.

Filipa esclarece que um dos primeiros impulsos da tripulação foi registar o episódio, por causa das “papeladas” relacionadas com o seguro do barco. Além da dor de cabeça burocrática, a interação com as orcas resultou na “perda quase integral de um leme e parcial de outro” e na alteração dos planos de viagem. O barco conseguiu chegar em segurança a Palma, onde permaneceu duas semanas em reparações.

“Toda a tripulação manteve a calma durante o ataque. O sentimento de que não havia muito que pudéssemos fazer estava claro. No meu caso, foi ainda mais especial, porque amo cetáceos e esta experiência teve uma dualidade de sentimentos para mim: assustadoramente lindo! A natureza é incrível e não somos mesmo nada perante ela”, descreve.

A história de Filipa junta-se a dezenas de outras. Desde julho 2020 que a costa de Portugal e Espanha é palco deste fenómeno único no mundo. No mês passado, um centro náutico também deu conta de “vários encontros entre orcas e veleiros que provocaram estragos” ao largo de Sesimbra. Orcas conhecidas dos biólogos marinhos – como o Levi, “o segundo maior macho da comunidade de orcas ibéricas”, e a Scarlet, “conhecida por ter interações com os veleiros” – foram identificadas.

Desde julho 2020 que a costa de Portugal e Espanha é palco deste fenómeno único no mundo, de dezenas de interações com orcas que resultam em danos para as embarcações.

Mas, afinal, o que motiva este comportamento?

Ao Green eFact, Alfredo López, biólogo da Universidade de Aveiro e membro do Grupo de Trabalho Orca Atlântica (GTOA), esclarece em primeiro lugar que não se tratam de ataques, mas sim de interações. “Elas não são agressivas”, garante.

O motivo destas interações, contudo, continua por explicar. Mas há algumas teorias em cima da mesa. Uma delas envolve um episódio traumático, em que uma orca – de nome White Gladis – se magoou numa colisão com um barco ou uma armadilha durante a pesca ilegal. Isso levou a que se tornasse defensiva com as embarcações, provocando a imitação do resto da população de orcas.

“Não temos a certeza. Pode ser que seja uma resposta preventiva depois de sofrer um encontro aversivo com um barco ou até um comportamento autoinduzido que depois funciona como uma moda”, explica Alfredo López.

Seja por brincadeira, moda ou trauma, o certo é que se trata de um “comportamento cultural e identitário” exclusivo das orcas ibéricas. Mais pequenas do que as orcas do resto do mundo, esta população vive no nordeste do Atlântico e está na lista das espécies vulneráveis da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), correndo um risco de extinção elevado.

“Não é o mesmo grupo [que interage com embarcações], são pelo menos 16 orcas pertencentes a quatro famílias. Mas todas são orcas ibéricas”, refere Alfredo López, acrescentando que nenhuma outra espécie apresenta um comportamento semelhante.

De acordo com o especialista, de 2020 a dezembro de 2023 o GTOA registou 1.031 encontros com orcas, incluindo avistamentos e interações, desde a costa norte de África até à Bretanha Francesa. Destes, 683 foram interações, isto é, casos em que “as orcas respondem à presença dos barcos e aproximam-se deles, por vezes tocando-os, certamente não atacando”.

“Em alguns casos são interações sem contacto físico, noutros casos são interações com contacto físico e sem danos. Noutros casos, estes contactos físicos provocam danos que se tornam graves, impedindo a navegação dos navios. Isso acontece em 19,9% das interações”, explica Alfredo López.

Em 2023, escreve o Live Science, um comportamento semelhante foi registado numa orca na Escócia, sugerindo que poderia ter extravasado as águas portuguesas e espanholas. No entanto, trata-se de um episódio isolado, tornando difícil relacioná-lo com os ataques ibéricos.

Seja por brincadeira, moda ou trauma, o certo é que “ataques” a embarcações são um “comportamento cultural e identitário” exclusivo das orcas ibéricas, esclarece o biólogo Alfredo López.

Como proceder durante uma interação com orcas?

“Não há muito que se possa fazer nestas situações, se seguirmos uma lógica sensata e humana perante os animais”, considera Filipa Peixoto. “Há quem atire diesel, areia, dispare contra elas. No mesmo dia, houve outro ataque contra outro veleiro português, não tiveram danos nos lemes, mas disseram através do VHF que tinham atirado fuel para a águas”, lamenta.

Alfredo López reitera que “reduzir as motivações” das orcas é o mais importante: “Se tocarem o barco, a recomendação é parar a embarcação, deixar o leme livre, desligar a eletrónica toda menos o rádio”, explica.

No site do GTOA, podem ser encontradas recomendações adicionais. “As orcas podem ser estimuladas por ações humanas para interagir com o barco, por isso tente ficar fora de vista e não grite, não tente bater nelas, tocá-las ou atirar-lhe coisas”, apela este grupo de trabalho.

Em Portugal, os mamíferos marinhos, incluindo as orcas, estão protegidos desde 1981 (Decreto-Lei n.º 263/81) e por diversos acordos internacionais. Existem regras específicas que devem ser seguidas para garantir a segurança tanto dos animais como das pessoas.

As embarcações devem manter uma distância segura dos cetáceos. Por exemplo, não é permitido que mais de três embarcações permaneçam a menos de 100 metros de um cetáceo ao mesmo tempo.

As embarcações de recreio também devem navegar com cuidado quando há cetáceos por perto, a fim de evitar colisões ou ferimentos. A recomendação é evitar aproximar-se dos animais ou persegui-los, respeitando as distâncias regulamentadas.