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Teresa Lencastre

Indústria pecuária usa ciência para encobrir pegada ecológica?

6 Apr 2024 - 09:55
O debate sobre a relação ambígua entre a indústria fóssil e a comunidade científica é já antigo, mas, agora, uma investigação realizada nos Estados Unidos da América acusa também a pecuária de usar as mesmas técnicas para descredibilizar o respetivo impacto ambiental.

A análise, publicada recentemente na revista Climatic Change, alega que a indústria da carne e dos laticínios dos EUA está a dar dinheiro a instituições académicas para encobrir a sua pegada ecológica, promovendo conhecimento científico duvidoso.

Ao que diz o estudo, dois centros de investigação – o CLEAR Center, da Universidade da Califórnia em Davis, e o AgNext, da Universidade do Estado do Colorado – receberam doações significativas da indústria, com o objetivo de “minimizar o seu papel na crise climática e moldar a elaboração de políticas a seu favor”.

“A indústria da pecuária está agora envolvida em múltiplos esforços multimilionários com universidades para obstruir políticas desfavoráveis, bem como para influenciar a política e o discurso sobre as alterações climáticas”, lê-se no documento.

Os principais visados na investigação são o professor Frank Mitloehner, líder do CLEAR Center, conhecido por defender que não é preciso consumir menos carne e leite para travar o aquecimento global, e Kimberly Stackhouse-Lawson, antiga aluna de Mitloehner e diretora da AgNext.

Um dos principais visados nesta investigação é o professor Frank Mitloehner, líder do CLEAR Center da Universidade da Califórnia, conhecido por defender que não é preciso consumir menos carne e leite para travar o aquecimento global.

Segundo descreve o estudo, intitulado “The animal agriculture industry, US universities, and the obstruction of climate understanding and policy”, o CLEAR Center terá recebido, desde 2002, mais de 5 milhões de dólares em financiamento da indústria, de entidades como a American Feed Industry Association, o National Pork Board, o California Cattle Council e a Burger King.

A AgNext, por sua vez, terá beneficiado, até maio de 2023, de 750 mil dólares, de grupos comerciais do setor pecuário e empresas de alimentos para animais. Uma delas foi a JBS, gigante brasileira da carne, que enfrenta acusações nos EUA por propaganda climática enganosa e onde Stackhouse-Lawson trabalhou.

A investigação, assinada por Viveca Morris, da Universidade de Yale, e Jennifer Jacquet, da Universidade de Miami, baseia as suas descobertas em registos públicos e currículos de professores e estudantes, que revelaram as suas fontes de financiamento.

Também cita documentos da Universidade da Califórnia obtidos pelo projeto de jornalismo de investigação da Greenpeace U.K. que, em 2022, já acusava Mitloehner de promover os interesses da pecuária e de descredibilizar relatórios sobre os impactos ambientais da carne.

Já em 2006 um relatório da ONU alertava para o impacto da pecuária no ambiente, concluindo que contribui para as alterações climáticas, a desflorestação, a escassez de água e perda de biodiversidade.

As autoras do estudo alegam que este lobby na academia se acentuou desde que, em 2006, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou um relatório intitulado “Livestock’s Long Shadow” (“A Longa Sombra da Criação do Gado”). À data, a ONU alertou para o impacto da pecuária no ambiente, concluindo que contribui para as alterações climáticas, a desflorestação, a escassez de água e perda de biodiversidade.

Em resposta, fundamentam Morris e Jacquet, empresas e grupos comerciais da indústria pecuária começaram a financiar e a defender o trabalho de Mitloehner, que desvalorizou as descobertas da ONU. Desde então, esta troca de influências tem vindo a aprofundar-se.

Em declarações ao The Washington Post, Mitloehner, rejeita as alegações de Morris e Jacquet. “A noção de que estou a minimizar a importância da pecuária no clima é absolutamente inaceitável para mim”, diz o professor.

“Estamos a fazer investigação que produz resultados sobre a atenuação das emissões e procuramos influenciar a indústria para que adote essas tecnologias, de modo a podermos reduzir as emissões”, defende.

Também em entrevista ao jornal, Stackhouse-Lawson normaliza a relação entre a academia e a indústria, realçando que permite à comunidade científica “compreender melhor os desafios” enfrentados pelas empresas.

A pecuária tem sido alvo de menor escrutínio do que a indústria fóssil em matéria de financiamento da academia, escreve o The Washington Post, mas este novo estudo pode ser um sinal de que essa tendência está a mudar.