voltar

Teresa Lencastre

Devem-se levar animais selvagens em apuros para casa?

7 May 2024 - 09:00
Um caso recente na Austrália levantou a polémica, após um pássaro selvagem acolhido por um casal ter sido retirado pelas autoridades e depois de novo devolvido à família, após uma vaga de protestos. O desfecho da história, porém, é “agridoce”, como sublinha um especialista português ouvido pelo Green eFact, pois, idealmente, os animais selvagens em apuros devem ser entregues a centros de recuperação e devolvidos à natureza.

Olhemos para o caso australiano com mais detalhe. O animal em questão é uma pega-australiana, conhecida por Molly, que foi encontrada em 2020, ainda bebé, num parque, depois de ter caído de um ninho. O momento foi registado pelo casal, que desde então começou a partilhar nas redes sociais o dia a dia do pássaro, com especial destaque para a ligação criada entre Molly e a cadela do casal, conhecida por Peggy. Hoje, a página do Instagram “Peggy and Molly” tem milhares de seguidores em todo o mundo.

Em março, contudo, o casal anunciou que teve de entregar o pássaro às autoridades. De acordo com a BBC, o Departamento do Ambiente, da Ciência e da Inovação australiano (Desi) declarou que a pega tinha sido “retirada da natureza de forma ilegal, sem autorização, licença ou autoridade”.

A notícia motivou protestos na Austrália e levou mesmo à intervenção do primeiro-ministro de Queensland, que apelou ao regresso do pássaro aos cuidados do casal. Depois de aconselhar-se junto de especialistas, o Desi decidiu finalmente inverter a decisão: a pega-australiana foi devolvida à família, mas com restrições: a família deve fazer formação e não pode fazer dinheiro com o animal.

O dia a dia de Molly começou a ser partilhado nas redes sociais, com especial destaque para a ligação criada entre a ave e a cadela do casal, conhecida por Peggy.

Em entrevista ao Green eFact, Samuel Infante, coordenador dos centros de recuperação de animais selvagens da Quercus, explica que a decisão de devolver o pássaro faz sentido neste caso específico, por considerar o bem-estar do animal, já irreversivelmente ligado à família. Ainda assim, diz tratar-se de uma história “agridoce”, que não deve ser encarada como um exemplo a seguir.

“O que aconteceu neste caso foi um fenómeno de ‘imprinting’. Quando as crias são muito pequenas, fixam-se no que ser que veem nos primeiros momentos de vida. Se virem um humano, vão pensar que são humanos, e vão impregnar-se nessa imagem”, começa por explicar Samuel Infante.

“O ‘imprinting’, infelizmente, não é reversível. A partir do momento em que acontece, esse animal nunca mais vai poder socializar com animais da mesma espécie, não vai poder ser devolvido à natureza. Por isso é que as autoridades australianas decidiram devolver o animal selvagem a este casal.”

Por causa deste processo, acrescenta o especialista, o animal ficou irreversivelmente vedado de regressar ao seu habitat natural e de se reproduzir.

Quando as crias são muito pequenas, fixam-se no que ser que veem nos primeiros momentos de vida. É o chamado “imprinting”, ou seja, se virem um humano, vão pensar que são humanos.

Samuel Infante explica que casos como este são comuns, também em Portugal, sobretudo por esta altura. O período reprodutivo de muitos animais atinge o pico na primavera e isso resulta numa maior queda de pássaros dos ninhos, mas também no nascimento e dispersão de outras crias. Ao mesmo tempo, verifica-se também um aumento da presença de aves migratórias que vêm reproduzir-se ao país.

A intervenção humana, adianta, deve ter como princípio orientador a manutenção dos animais selvagens na natureza. Ainda assim, alerta Samuel Infante, se o ‘imprinting’ indevido já tiver acontecido, devolver o animal à natureza pode ser ainda pior.

“Às vezes as pessoas fazem este primeiro processo de recuperação, o animal está ‘impregnado’, e depois vão à natureza e libertam-no. Aí estão a condená-lo à morte. Podem ser comidos por outros animais, ser atacados. Ou até atacar animais da mesma espécie porque não se reconhecem.”

Se o ‘imprinting’ indevido já tiver acontecido, devolver o animal à natureza pode ser ainda pior.

O que deve ser feito fazer perante um animal selvagem em apuros?

“Do ponto de vista da conservação, não é melhor criar ou manter estes animais em casa”, reitera o especialista.

Posto isto, os procedimentos a seguir variam caso a caso. No caso de um pássaro que caiu de um ninho, se não aparentar lesões, o primeiro passo é recolocá-lo no lugar.

No caso de o ninho estar fora de alcance, também é possível “colocá-lo num sítio alto, numa árvore ou telhado, longe de predadores, como gatos, e esperar que os progenitores regressem”. Para isso, contudo, é importante avaliar a fase de crescimento do animal.

“Se o corpo já estiver completamente coberto de penas, podem arriscar colocá-lo num sítio alto. Mas se for uma ave só com penugem, o frio da noite pode ser o suficiente para matá-la.”

Se não for possível avistar o ninho ou os progenitores, ou se o animal estiver debilitado ou ferido, as pessoas devem, então, recorrer às autoridades. O mesmo se aplica a outras espécies, incluindo mamíferos.

No caso de um pássaro que caiu de um ninho, se não aparentar lesões, o primeiro passo é recolocá-lo no lugar.

Em Portugal, o primeiro a fazer é ligar para a Linha SOS Ambiente e Território – o 808 200 520 – para solicitar a recolha do animal. Em segunda instância, as pessoas podem levar o animal para um posto da GNR, da PSP ou do ICNF, ou também um dos vários centros de recuperação de animais selvagens em Portugal.

Durante o transporte, Samuel Infante aconselha a mínima intervenção possível: “É muito importante não alimentar. Muitas vezes as pessoas desconhecem a dieta destes animais e dão comida desadequada, como arroz, pão ou farinhas, que podem causar problemas.”

No caso das aves, dar água também só em recomendado em situações de muito calor: “Às vezes, as pessoas tentam dar água, que pode ir para a traqueia e sufocar o animal.” Colocar o pássaro numa caixa de cartão fechada e ventilada é o ideal. Samuel Infante explica que no caso das aves a escuridão acalma.

Por outro lado, o especialista esclarece um mito frequente: não é verdade que os progenitores de aves rejeitam a cria depois de ser tocada por um humano. No caso dos mamíferos, é diferente, pela importância que atribuem ao cheiro: se for necessário tocar num mamífero para o retirar da estrada, por exemplo, é aconselhável usar luvas ou outra peça de roupa.

“Felizmente temos muitas histórias boas de resgates. Não estão filmados, mas temos muitos casos bem-sucedidos”, conta o especialista.

“Tivemos uma raposa presa numa armadilha, que ficou sem uma parte da pata, mas conseguimos libertá-la na natureza. Recentemente, também tivemos uma águia que ficou presa num arame farpado. Foi um agricultor que a encontrou. Fez uma cirurgia, já está a voar e vai ser recuperada.”

Não é verdade que os progenitores de aves rejeitam a cria depois de ser tocada por um humano. No caso dos mamíferos, é diferente, pela importância que atribuem ao cheiro.

Em 2023, os três centros de recuperação de animais selvagens da Quercus receberam 1261 animais. 39% foram devolvidos ao seu habitat natural. De acordo com Samuel Infante, a restante percentagem engloba os animais que não sobrevivem, a par dos que não conseguem regressar à natureza, por ferimentos ou ‘imprinting’, por exemplo.

A classe das aves representou cerca de 87% das entradas, seguida pelos mamíferos (12%) e, por fim, pelos anfíbios e répteis (1%). “As causas de entrada mais frequentes foram queda do ninho ou órfão e traumatismo de origem desconhecida”, lê-se no site da Quercus.

Considerando todos os 12 centros de recuperação de animais selvagens terrestres em Portugal, Samuel Infante estima que número de entradas ronde as 5 a 6 mil.

“Ao longo dos últimos anos, a tendência verificada tem sido do aumento do número de ingressos”, diz a Quercus. O aumento pode dever-se, em parte, “a uma maior sensibilidade da população e das autoridades para este tema”.