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Patrícia Barnabé

Canções da Terra: um filme para fazer pensar que é, também, uma homenagem ao amor

12 Jun 2024 - 09:00
Songs of Earth/Canções da Terra, de Margreth Olin, é um belíssimo poema dedicado à Natureza e ao Humano que ela encerra. A não perder, na plataforma Filmin.

Estreou no Dia da Terra e representou a Noruega nos Óscares deste ano, mas, como todos os bons documentários, é uma película sem tempo, das que ecoam na memória, e a que se volta várias vezes.

É, aliás, um filme com uma grande elasticidade temporal, sentimo-nos muitas vezes a planar sobre o mundo, a viajar. O seu único tempo é o do lastro que dedicamos à reflexão sobre os filmes que mexem connosco, que nos marcam, e este é um desses casos, é um filme que permanece porque não se sente apenas, faz-nos pensar.

Não é de estranhar, já que os seus produtores executivos são o realizador alemão Wim Wenders e a atriz sueca Liv Ullmann.

Ambos escusam apresentações, pois pertencem a uma cepa muito inspirada e inspiradora de artistas do grande Cinema, mas, para os mais distraídos, ele é o realizador de filmes tão fundamentais, belos e contemplativos como Paris/Texas, Asas do Desejo ou Lisbon Story, ou o mais recentes Alselm, o som do tempo e Dias Perfeitos, para nomear alguns.

Ela é uma das musas de Ingmar Bergman, com quem partilhou a vida e protagonizou uma dezena de filmes, estreando-se no cinema com Persona, em 1966, e dando nas vistas no magistral Cenas de um Casamento, de 1973, ou Sonata de Outono, de 1978. Nos anos 90, passou para o outro lado da câmara numa meia dúzia de filmes, escreveu quatro livros e tornou-se embaixadora principal da UNICEF. Estas duas almas não podiam ser melhor dupla para tornar este filme sublime.

Como todos os bons documentários, Songs of Earth/Canções da Terra, uma película sem tempo, das que ecoam na memória, e a que se volta várias vezes.

No centro desta viagem sensorial de hora e meia está a história de amor dos pais da realizadora, Margreth Olin, e dos passeios do seu progenitor na terra que viu nascer toda a sua família, e onde ainda vivem, aninhada nas monumentais paisagens montanhosas do vale de Oldedalen, no condado de Vestland, na Noruega ocidental.

A realizadora segue os passos do seu pai, de 84 anos, enquanto este atravessa um cenário digno de grande tela, e observa o degelo do glaciar maciço que conhece desde que nasceu, assim como o seu pai e o pai do seu pai também o conheceram. Aquele desfaz-se perante o aumento das temperaturas planetárias, uma consequência evidente das alterações climáticas.

Com ele, testemunhamos o desalento de uma paisagem em mudança e perigo, para quem a ama e dela se alimenta. O glaciar derrete e, como a água que escorre entre os dedos das nossas mãos, a possibilidade de evitá-lo depende de todos, não apenas das pequenas e frugais comunidades que ali moram.

Assim como alguns dos países mais pobres do mundo, são os primeiros a sofrer uma ameaça que não foram eles a inflingir. Mas ouvimos as histórias que se contam, das derrocadas que ceifaram famílias inteiras, da dificuldade e dureza que criaram aos homens.

Como aconteceu em Lodalen, em 1905, e depois em 1936 na montanha de Ramnefjellet, famílias ficaram desfalcadas, ouvimos do pai narrador – e os silêncios falam tanto como as palavras, que procuram compreender a mortalidade.

 

A realizadora norueguesa Margreth Olin segue os passos do pai, de 84 anos, pela terra natal da família, enquanto observam o degelo do glaciar maciço que ambos conhecem desde que nasceram.

Neste pequeno filme, que se saboreia como um rebuçado que se desfaz lentamente na boca, atravessamos as quatro estações, belíssimas, naquele lugar tão inóspito como acolhedor. Observamos a água que escorre das montanhas, os ventos que despenteiam as copas das árvores atravessadas por bandos de pássaros, a terra feita de rocha em silhuetas várias e da neve riscada que os alces deixam à sua passagem.

Todos os elementos estão representados na forma como a nossa ligação a eles nos traz tranquilidade, paz interior e, antes de tudo o mais, nos conecta com o que realmente somos.

A realizadora conta que, em criança, quando pedia ao pai para lhe contar uma história, ele levava-a a passear: “Olha à tua volta”, dizia, “e não andes tão depressa que te esqueças de olhar.” Então, juntos, empreenderam esta viagem, mas o pai avisou-a de que demoraria um ano, só assim ela compreenderia melhor.

O olhar é tudo neste filme, que tem uma fotografia magnífica. Vemos as fendas no glaciar com uma beleza de microscópio, detalhes impressionantes de pequenas flores, assim como admiramos a grandeza vista de cima, através de grandes planos magnânimes, que nos tornam pequenos perante tamanha imensidão e generosidade.

A realizadora conta que, em criança, quando pedia ao pai para lhe contar uma história, ele levava-a a passear: “Olha à tua volta”, dizia, “e não andes tão depressa que te esqueças de olhar”.

Um filme sensível que é uma poesia de vida nos mais ínfimos detalhes. Exibe a relação telúrica que os povos do norte da Europa têm com a sua terra, a Natureza, mas também a profundidade dos sentimentos, da pertença, do humanismo.

Este filme fala de muito mais do que de Natureza, fala do amor, entre os seus pais, já idosos e sempre juntos, tanto no alento, como na fragilidade. E fala da herança que os pais deixam aos filhos, através dos tempos, e como estes, assim, aprendem a amar o que os rodeia. Margreth Olin partiu de casa dos pais há 30 anos, ainda sente aquela terra como dela. É, no fundo, uma história de amor aos pais, a quem dedica o filme, e à terra que nos vê nascer, a todos e a cada um de nós. É um grito ecológico.

Também a sonoplastia é exemplar. Trata-se de um filme para ouvir com o volume alto, de preferência em estéreo e com as luzes apagadas. Estas paisagens esmagadoras e comoventes vão entrar pelo ecrã de rompante, como uma brisa, de forma arrebatadora.

Este filme fala de muito mais do que de Natureza, fala do amor, entre os seus pais, já idosos e sempre juntos, tanto no alento, como na fragilidade.

A sensorialidade é tal que quase conseguimos tocar naquela Natureza gigante, sentir a frescura da água, o batimento cardíaco da terra. É uma poesia nórdica de olhar o mundo, por alguma razão tudo ali avança primeiro, do amor à Natureza, ao amor ao outro, à tolerância e à igualdade de todos seres, na grande alegria como na grande tristeza.

Preparem-se para ficar calmos, sonhadores, melancólicos e filosóficos, tão mínimos quanto gigantes, para se comoverem, maravilharem e, principalmente, perceberem como em cada um de nós pulsa o planeta, que precisamos urgentemente de preservar, não só porque somos todos um, mas também porque somos todos tudo.