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Teresa Lencastre

A jardinagem ajuda a ultrapassar traumas psicológicos?

29 May 2024 - 09:00
O contacto com a natureza em geral e a jardinagem em específico podem ajudar a resolver traumas psicológicos. Quem o diz é Sue Stuart Smith, autora de um “best-seller” sobre a importância da natureza para a saúde mental. Para a psiquiatra e psicoterapeuta britânica, o poder regenerador da jardinagem é tal, que pode mesmo minimizar traumas de guerra e o medo da morte.

A especialista falou sobre os benefícios psicológicos da natureza durante um simpósio internacional promovido pelo projeto “Compor Mundos. Humanidades, Bem-estar e Saúde” da Universidade Fernando Pessoa. No encontro, a autora do “best-seller” do Sunday Times “The Well Gardened Mind” descreveu a história do seu avô, Ted May, um ex-militar que foi prisioneiro durante a Primeira Guerra Mundial e que inspirou em grande parte o seu livro.

“Teve muita sorte em sobreviver. Quando regressou a casa, estava muito traumatizado. Um programa de reabilitação hortícola marcou um ponto de viragem na sua recuperação e devolveu-lhe a vida”, referiu a autora.

Sue Stuart Smith adianta que o caso do seu avô não é único. “Um estudo feito no pós-guerra concluiu que, de todas as atividades vocacionais e de reabilitação em que os ex-militares se envolveram, o trabalho na terra proporcionou a melhor forma de recuperação”, refere a psiquiatra e psicoterapeuta.

A jardinagem põe as pessoas em sintonia com “o ciclo da vida e a passagem das estações”, tornando-as mais capazes de lidar com traumas, sintomas de depressão e até com a morte, considera Sue Stuart Smith.

A jardinagem pode ser terapêutica não só depois, mas também durante os conflitos armados, adianta Sue Stuart Smith. Ainda durante a Primeira Guerra Mundial, conta, alguns soldados escreviam às suas famílias pedindo sementes para criar jardins nos campos de batalha.

“Pelas cartas, algumas das quais cito no meu livro, é evidente que se tratava de uma verdadeira tábua de salvação psicológica. Ajudou-os a agarrarem-se a alguma coisa, nalguns casos, penso que à sua sanidade, porque estavam mergulhados na mais terrível paisagem de morte e destruição.”

Há vários motivos para este poder regenerador da natureza e da jardinagem, explica Sue Stuart Smith. Em primeiro lugar, trata-se de uma herança evolutiva, explica, que remonta aos tempos em que o ser humano era “caçador-recolector” e uma “espécie pratense”.

A biofilia – que se refere à atração espontânea que crianças e adultos sentem pela natureza – deve ser “cultivada desde a pequena infância”.

“Muitos aspetos do nosso funcionamento ao longo da evolução estão preparados para responder a estímulos do mundo natural. Por isso, não nos deve surpreender que passar tempo na natureza tenha efeitos antisstress tão fortes em nós”, refere.

“Quando nos envolvemos em atividades de imersão que estão muito de acordo com as nossas origens como espécie, como caminhar na natureza, observar pássaros, pescar, jardinar, etc., isso conduz a uma espécie de revitalização cognitiva, porque estamos a usar o nosso cérebro de uma forma muito mais integrada.”

Por outro lado, a jardinagem põe as pessoas em sintonia com “o ciclo da vida e a passagem das estações”, tornando-as mais capazes de lidar com traumas, sintomas de depressão e até com a morte, considera Sue Stuart Smith. Plantar uma árvore quando alguém morre, por exemplo, pode funcionar como uma prática simbólica, reforçando a ideia de que “algo sobrevive na natureza”.

“Quando semeamos, começamos a pensar no futuro de uma forma positiva. E isto é extremamente útil para qualquer um de nós em qualquer altura em que o futuro nos pareça problemático”, refere Sue Stuart Smith.

Os jardins possibilitam a “experiência da beleza” e proporcionam um sentimento de segurança.

“A jardinagem põe-nos em contacto com a transitoriedade da vida e pode ajudar-nos a adaptarmo-nos à realidade da morte, à necessidade da morte. Mas também nos dá uma espécie de apoio nesse sentido, porque experimentamos uma sensação de continuidade da vida com o regresso das estações todos os anos.”

Jardinar também ajuda a canalizar emoções negativas, como a raiva, a tristeza ou a frustração, refere. “Todas elas podem ser canalizadas de forma criativa através do trabalho de jardinagem. Se não cortarmos algumas das silvas, desenterrarmos as ervas daninhas ou cortarmos algumas das nossas plantas, o jardim não se desenvolverá.”

Além disso, os jardins possibilitam a “experiência da beleza” e proporcionam um sentimento de segurança. “Por definição, um jardim é um recinto. A derivação da palavra ‘jardim’ na maioria das línguas está ligada a recinto. E esta sensação de estarmos seguros, mas não presos, é muito importante”, explica.

Para Sue Stuart Smith, a jardinagem também abre portas a uma “relação recíproca com a natureza”, que em grande parte se “perdeu com a agricultura industrializada”.

Para Sue Stuart Smith, a jardinagem também abre portas a uma “relação recíproca com a natureza”, que em grande parte se “perdeu com a agricultura industrializada”. Em vez de “extrairmos o máximo que pudermos da natureza”, importa regressar ao “diálogo”, defende.

“Sinto que é uma espécie de diálogo silencioso em que tenho de responder ao que a natureza faz e, quando faço algo, tenho de esperar e ver o que acontece a seguir”, descreve.

Esse regresso à natureza “é particularmente importante num cenário de alterações climáticas”, adianta. “Nesta época de alterações climáticas e de perda de biodiversidade, a ecoansiedade está a tornar-se muito mais comum”, avança. Apesar disso, “ainda há muito que podemos fazer para recuperar a situação (…) se conseguirmos estabelecer uma ligação com os poderes regenerativos da natureza”.

O contacto com o mundo natural “afeta positivamente a saúde mental e física, sobretudo das populações mais desfavorecidas”.

Mas serão os benefícios da natureza são iguais para todos? Em declarações ao Green eFact, Marina Prieto Afonso, coordenadora do projeto “Compor Mundos. Humanidades, Bem-estar e Saúde” e também especialista nas áreas da evolução, natureza e saúde mental, refere que “os benefícios do contacto com a natureza são, em geral, importantes para todos”.

Ainda assim, confirma a psicoterapeuta dinâmica, “há pessoas que, pelo seu desenvolvimento e por experiências de vida, por vezes traumáticas” não se sentem particularmente atraídos pelos espaços naturais ou pelos animais.

“É normal as crianças pequenas associarem emoções negativas, como medo ou estranheza, a animais, à floresta, à água. Geralmente estas fases são ultrapassadas, mas em certas pessoas podem manter-se durante muito tempo, ou mesmo toda a vida, apresentando-se sob a forma de fobias ou medos irracionais.”

Esse regresso à natureza é particularmente importante num cenário de alterações climáticas e numa época em que a ecoansiedade está a tornar-se muito mais comum.

Por outro lado, “pessoas que sempre viveram em cidades e não experimentaram os benefícios da natureza podem desenvolver uma atração específica pelas cidades e não pelo campo ou espaços verdes”.

Apesar disso, a especialista reitera que o contacto com o mundo natural “afeta positivamente a saúde mental e física, sobretudo das populações mais desfavorecidas”. Na opinião de Marina Prieto Afonso, a biofilia – que se refere à atração espontânea que crianças e adultos sentem pela natureza – deve, por isso, ser “cultivada desde a pequena infância pela experiência concreta destes espaços naturais e pela proximidade com os animais”.

“Ajudar as pessoas que não sentem particular atração pela natureza ou animais depende da sua vontade de o fazerem, o que pode acontecer na clínica (…) Geralmente associam-se técnicas de dessensibilização com psicoterapia biográfica”, refere.

“Uma das formas de promover a ligação com os elementos naturais consiste no design biofílico dos lugares de convívio urbanos, baseando-se na utilização de plantas e materiais orgânicos, e no desenho biomimético dos espaços”, acrescenta.