Onde começa o conceito de Economia Circular: na reciclagem, na reutilização ou no design? Num mundo onde o desperdício é cada vez mais um problema, o início de conceção de um produto é uma das grandes soluções para o futuro
Quando se lê a expressão Economia Circular, é natural que o nosso pensamento se remeta para mais um subtema dentro desse vasto universo da Economia. Mas, se analisarmos mais atentamente, vemos que, na verdade, é uma das novas soluções para um paradigma que se vive hoje em dia: abundância versus carência. Ou excesso de produção e falta de recursos, sejam estes naturais, porque não se pode extrair elementos da Terra infinitamente, ou financeiros, no caso das populações que não têm forma de aceder a necessidades básicas.
No nosso dia a dia, o conceito de Economia Circular começa a fazer parte das escolhas que fazemos e do que é posto à nossa disposição. Estamos a viver uma fase de transição no que respeita à cultura do descarte, e lentamente algumas ideias inovadoras começam a entrar no nosso modo de vida. O desperdício vai deixar de ser uma das causas de angústia planetária para fazer parte de um pensamento também ele circular.

Os resíduos como matéria prima: um novo paradigma económico que promove soluções inovadoras que começam no momento da conceção dos produtos
O princípio de utilizar os resíduos como recurso está a mudar o mundo. Em todos os setores de produção e em todas as indústrias, o lixo deixou de ser apenas lixo para passar a ser matéria-prima. Por outro lado, a forma como os produtos são inicialmente concebidos pode ser o início da ideia de reutilização de matérias-primas.
Vejamos o caso de uma máquina de lavar roupa. Se as peças exteriores forem coladas, vai ser complicado desmantelar o equipamento e reaproveitar o material; se for colocada com parafusos, será mais fácil. Ou um telemóvel. Este pequeno objecto que se tornou uma presença marcante no nosso quotidiano (e é produzido em larga escala devido à sua pouca durabilidade) está, na sua maioria, envolvido por uma camada exterior que não deixa alcançar as peças do seu interior. Dificilmente os componentes se substituem. Têm também pouca longevidade no seu software, e são por isso um equipamento considerado pouco ecológico.
Mas tudo isso está em vias de mudar, não só pela implementação de regulação, como também pela responsabilidade do consumidor.
Em junho de 2023, o tema das baterias dos telemóveis foi levado ao Parlamento Europeu. Os novos regulamentos pretendem garantir que as diferentes peças de smartphones e de outros gadgets possam ser substituídas por peças disponíveis durante cinco anos após o equipamento ser descontinuado. Mais importante do que a sua resistência à água, vai ser a possibilidade de o usuário substituir a bateria sem o uso de ferramentas especializadas nem o calor e solventes que são necessários hoje em dia para descolar os componentes.

A União Europeia definiu novas diretivas sobre a fabricação de telemóveis, em vigor em 2027. As regras complementares sobre o ecodesign vão ter de tornar os produtos “mais fáceis de reparar, atualizar e reciclar”
Um artigo publicado no jornal “The Guardian” no mesmo mês resume as novas diretivas na fabricação destes dispositivos, que vão entrar em vigor apenas em 2027. As regras complementares sobre o ecodesign vão ter de tornar os produtos “mais fáceis de reparar, atualizar e reciclar”, e “a proposta de ecodesign estabelece requisitos mínimos para smartphones e tablets, abrangendo proteção contra poeira e água, resistência a quedas acidentais e longevidade da bateria”. Mesmo que estas regras sejam europeias, os fabricantes de outras partes do mundo vão ter de as seguir para continuarem a exportar os seus produtos para a União Europeia. No mercado de dispositivos ecologicamente sustentáveis, o Fairphone está na linha da frente, mas são muitas as marcas, entre elas a gigante Apple, que já estão a colocar a tecnologia ao serviço do ecodesign.
Este é um exemplo em que os princípios da Economia Circular vão trazer benefícios a vários níveis: menos impacto ambiental, menos poluição, menos desperdício, mais proteção da biodiversidade. Mas não é o único setor em que a mudança vai ser radical, seja na prestação de serviços ou na conceção de produtos.
Estratégias da Europa
Os esforços para caminharmos na direção da Economia Circular estão a ser feitos a nível da legislação, mas também através de instituições como a fundação criada pela velejadora britânica Ellen MacArthur, empenhada em aplicar estes princípios em várias áreas. No processo de desenvolvimento de um produto, enviar resíduos para aterros deve ser o último recurso. As soluções para lá chegarmos são várias, e começam no desenho ou criação inicial. Tecnicamente ou biologicamente, deve ser possível dar continuidade aos produtos.
A ideia base é simples, como se explica no site da Fundação Ellen MacArthur: “Embora às vezes pareça que o desperdício é inevitável em certas situações, o desperdício é na verdade o resultado de escolhas de design. Não há desperdício na natureza, é um conceito que introduzimos. Desde produtos minúsculos e de curta duração, como pacotes de batatas fritas, até estruturas aparentemente permanentes, como edifícios e estradas, a economia está repleta de coisas que foram concebidas sem perguntar: o que acontece com isto no final da sua vida?”
No caso da Europa, o conceito de Economia Circular caminha lado a lado com a reciclagem, a reutilização, a rastreabilidade (ou mapa digital) e o design. Com o pensamento prioritário de perpetuar o mais possível a vida dos produtos, há uma mudança de paradigma que começa no desenho e conceção de um artigo. A questão do packaging, por exemplo, é prioritária, devido à quantidade de plástico e outros materiais, como papel ou madeira, que são usados para embalar produtos e são depois descartados.
Criado no contexto da Economia Circular na União Europeia, o regulamento da “Waste Framework Directive” tem na sua génese a circulação de matérias-primas e o reaproveitamento e diminuição de resíduos. Ao longo dos últimos anos, têm sido vários os planos de ação agregados a esta directiva. Em 2022, foi apresentada uma proposta de regulamento para que na União Europeia os produtores pensem no desenho dos seus produtos de forma a que no fim de vida possam ser desmantelados e as peças separadas e reaproveitadas. É uma regra a ser implementada em quase todos os setores (excluindo o caso de alguns materiais hospitalares, por exemplo).
Em Portugal, as propostas de regulamento são elaboradas pela Direção-Geral das Atividades Económicas (DGAE) desde o primeiro “Plano de Ação para a Economia Circular”, em 2015. A contribuição desta instituição é, como a dos seus pares, debatida no Parlamento Europeu. No regulamento nacional, a estratégia é delineada através do “Plano de Ação para a Economia Circular em Portugal” e visa “os conceitos de reutilização, reparação e renovação de materiais e energia”.
O destino da roupa
A imagem de uma montanha de têxteis surge muitas vezes nos nossos ecrãs, seja num documentário sobre países africanos que recebem resíduos, seja numa intervenção artística onde se retrata o excesso. A acumulação de peças de roupa é um problema criado pelo chamado “primeiro mundo” e com maior impacto nas regiões e locais subdesenvolvidos, com poucas infraestruturas, como é o caso de Dandora, a maior lixeira do Quénia. No entanto, todos vamos sofrer com este problema, porque afeta todo o planeta.

O conceito de reutilização de peças de roupa previamente usadas começa a conquistar o seu espaço
Quando toneladas de roupa são descartadas para destinos onde não vão ter um tratamento de reciclagem, os seus materiais, seja a fibra ou as tintas, vão espalhar-se nos rios, nos mares e nos solos. No fim do seu trajeto, vão acabar por se transformar em microplásticos e componentes tóxicos que vão parar à nossa alimentação.
Na indústria têxtil, apenas 1% de novos produtos resultam de materiais reciclados. É uma percentagem mínima para uma produção massiva de têxteis – que terminam a sua vida nos 15 milhões de toneladas de resíduos têxteis que são descartados todos os anos. Apesar de o conceito de reutilização estar a ganhar mais espaço, o aproveitamento ainda é residual. Este problema começa precisamente no design das peças. Por muito avançada que seja a tecnologia, se os tecidos misturam poliéster com algodão, o seu processo de reciclagem vai ser mais complicado.
À mistura de fibras acrescenta-se o problema dos acessórios: botões, fechos, pormenores decorativos, estampagens… Uma série de elementos disruptores que vão dificultar a reciclagem. Um estudo da Fashion for Good em parceria com a Circle Economy – Sorting For Circularity Europe: An Evaluation And Commercial Assessment Of Textile Waste Across Europe –, mostra o que acontece atualmente na vida dos têxteis na Europa: “O algodão foi considerado a fibra dominante (42%), embora o elastano possa estar presente numa parcela relevante desta categoria. O algodão é seguido por uma grande presença de misturas de materiais (32%), quase metade das quais consistia em polialgodão (12%). Com base em três características, composição do material, presença de disruptores, tais como zíperes e botões, e cores, 21% dos materiais analisados são considerados adequados como matéria-prima para reciclagem mecânica, enquanto 53% são adequados para reciclagem química. No entanto, precisa de ser tecnicamente e financeiramente viável para remover desreguladores para recicladores químicos; caso contrário, apenas cerca de um quinto da matéria-prima potencial total para a reciclagem química de fibra em fibra estaria disponível.”

Todos os elementos que compõem uma peça de roupa são fundamentais para a tornar mais reciclável. Se uma camisola tiver apenas uma fibra, sem acessórios nem costuras, facilmente será reaproveitada, transformada num novo tecido
No princípio do ecodesign, uma peça de roupa tem de ser pensada para as suas fibras serem reaproveitadas quando deixa de ser usada. Se uma camisola tiver apenas uma fibra, sem acessórios nem costuras, facilmente será reaproveitada, transformada num novo tecido. Ou seja, pode perpetuar-se a vida dessa fibra em várias camisolas, com a ajuda de tecnologia que já está a ser desenvolvida em vários países, incluindo Portugal, onde este setor é muito avançado.
Uma das novas medidas implementadas nesta área alinha-se com uma estratégia apresentada pela Comissão Europeia em março de 2022 (EU Strategy for Sustainable and Circular Textiles), onde se refere que o consumo de têxteis na UE é o quarto maior impacto no ambiente e nas alterações climáticas, depois da alimentação, da habitação e da mobilidade, e que é a terceira maior atividade no consumo de água e uso da terra.
A partir de 2025, ao lado dos contentores de plástico, papel e vidro, vai haver um contentor de têxteis. Daí, o material segue para reutilização ou para reciclagem, que pode ser mecânica (mais comum no aproveitamento de algodão e lã), ou química, que leva à obtenção de fibras artificiais, que podem dar origem a tecidos como a viscose, o liocel e o modal.
Por um lado, há a escolha de materiais na conceção de um produto, por outro, há o objetivo de diminuir a necessidade de recursos necessários na indústria têxtil. Em 2017, um relatório da Fundação Ellen MacArthur – A New Textiles Economy – referia que a indústria têxtil consome cerca de 93 mil milhões de metros cúbicos de água por ano. Além dos recursos hídricos, os tingimentos, lavagens e acabamentos implicam ainda o consumo de muita energia.
No mesmo estudo, os dados mostram que, anualmente, 200 mil toneladas de corantes perdem-se em efluentes devido a processos ineficientes de tingimento e acabamento. No mundo da moda, é costume dizer-se que as tendências de cores de uma temporada estão espalhadas pelos rios da Índia, onde os tecidos são muitas vezes tingidos.
Nesse sentido, foi criado em 2019 o Fashion Pact, um acordo realizado na cimeira G7 em que se pretende chegar a 2030 com 100% de energias renováveis no sistema de produção de têxteis e vestuário. E é também nesse sentido que são criadas parcerias com instituições governamentais e produtores, como é o caso da Fundação Ellen MacArthur e a marca Salsa.
O projeto The Jeans Redesign, do qual a Salsa faz parte, traz uma nova esperança aos produtores mais responsáveis e aos consumidores com preocupações ambientais. Para fabricar umas calças jeans são necessários vários recursos: algodão, pesticidas, fertilizantes e água. São lavados várias vezes, com pedras, para criar o efeito que conhecemos e o conforto que experimentamos. Neste projecto, utilizam-se peças de jeans antigas, a água é reutilizada várias vezes, tem materiais biodegradáveis nas suas costuras e os botões são facilmente retirados, entre outros pormenores que minimizam o impacto ambiental na cadeia de valor.
O grande aliado desta nova geração de jeans é a tecnologia, mas foi necessária uma mudança de pensamento de quem desenha e de quem produz este artigo icónico. Os primeiros jeans redesenhados foram lançados no mercado em junho de 2021. Hoje, mais de 100 organizações de 25 países redesenham jeans com o compromisso de contribuírem para o aperfeiçoamento desta técnica e deste sistema. Ou seja, partilham conhecimento para um bem comum.
São boas notícias para os consumidores, que têm, assim, mais possibilidades de fazer uma escolha responsável. Podem adquirir peças totalmente recicladas que no futuro podem ser recicladas, com novo design. A circularidade no mundo da moda pode ser algo inovador e dinâmico, também no aspeto estético. Um desafio que pode ser replicado em todo este setor, que até agora tem tido um impacto tão grande na natureza.