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Alfredo Cunhal Sendim

Alfredo Cunhal Sendim: “a Natureza não existe apenas para contribuir para o PIB”

19 Nov 2023 - 09:00
A recente lei acordada na UE sobre a recuperação da Natureza, apesar de tímida, marca uma viragem importante no discurso político europeu. Pela primeira vez admite-se que a Natureza não existe apenas para contribuir para o PIB.

Até hoje, o que está convencionado é que o ager (aquilo que está a nossa volta) sirva para nos providenciar o que necessitamos, com exceção de algumas joias que conservamos para nos encantarmos. A nova lei reconhece de forma pioneira a importância dos sistemas naturais, determinando mais do que a sua proteção, o seu restauro em larga escala. Trata-se de um novo paradigma que requer da parte de todos um esforço significativo.

Esta necessidade está fundamentada cientificamente no facto de genericamente o modo como vivemos, em particular como fazemos agricultura, ser responsável por uma dramática destruição da vida dos nossos ecossistemas, para além de profundas alterações estruturais. As consequências do nosso modelo não são compatíveis com a nossa existência a curto prazo, pelo que urge fomentar alternativas.

A renaturalização, mais do que uma condição castradora, é uma base solida para desenvolver uma nova economia. Pragmaticamente as percas económicas associadas à expansão do modelo actual são muito superiores à totalidade dos benefícios. Afirmar hoje que o modelo agrícola industrial, refinado de precisão e de biotecnologia é a única forma de combater a fome, só pode significar ignorância, interesses especulativos ou ambas. Estaremos sempre muito melhor alimentados com um sistema natural regenerado à nossa volta do que com o campo transformado numa fábrica poluente e dependente. Os ecossistemas funcionam sozinhos e não causam os problemas que a nossa ganância colhe. Para além do mais, a ideia de que recolher alimentos do sistema natural não era digno de um ser superior, é do tempo dos romanos, e justificava-se para que estes pudessem cobrar os impostos suficiente para pagar à polícia necessária para vivermos em paz. Hoje é um absurdo.

A renaturalização, mais do que uma condição castradora, é uma base solida para desenvolver uma nova economia.

Há milénios que aprendemos a assaltar o sistema natural, encaminhando a energia que se acumulou no solo para a planta ou animal que nos interessa. O adjetivo assalto prende-se com o facto de nós deliberadamente tentarmos eliminar o máximo de elementos do sistema para que não usem a “nossa “ energia. Esta prática com que todos convivemos é responsável por uma fatia de leão da sexta extinção do nosso planeta.

É normal, a agricultura de assalto está para a humanidade como uma roulote de farturas está para uma criança. O encantamento é inevitável. Outra coisa será que a criança continue a comer farturas todos os dias da sua vida.

Qualquer assalto trás pão para hoje, e fome para amanhã. Mais abundância, mais gente, mais destruição da Natureza, mais abundância, mais gente, parece bem, o problema é o que fica para trás e o depois. Dois terços do nosso território são hoje incultos. Mas a história já vem de trás. No Neolítico fizemos a nossa primeira grande experiência de assaltar a natureza. Correu mal. Os primeiros impérios voltaram ao ataque com mais armas e a coisa voltou a correr ainda pior.

A certa altura, lá para a baixa Idade Média, alguém se lembrou de procurar outro caminho, o de tentar viver com o sistema natural em permanência em vez do assaltar continuamente. Simplificando-o, domesticando-o, mas respeitando os seus limites de funcionamento autónomo. Durante séculos funcionou pelo menos como equilíbrio dos danos provocados pela agricultura extrativista que nunca deixou de crescer. Esta “agricultura” acabou por inviabilizar as outras “formas de subsistência” a quando da industrialização do “assalto” e mais tarde da introdução da Química no mesmo, chamando-lhe curiosamente revolução verde.

A agricultura de assalto está para a humanidade como uma roulote de farturas está para uma criança.

Apesar de respeitar obviamente o sorriso da criança ao imaginar tirar a fome para a vida com farturas, pactuar com os interesses particulares e especulativos de quem cegamente lucra com um uso inapropriado das mesmas – apesar de todas as evidências, e ainda afirma entusiasticamente que devemos seguir comendo-as a caminho do abismo – não é razoável. A indústria alimentar atual (como a do papel, da cannabis, do lítio, …) que usa os agricultores como linha da frente, produz essencialmente farturas.

Está muito bem organizada para produzir resultados extraordinários para os seus acionistas. Pouco mais, a avaliar pela perca de escrúpulos a que assistimos nas diferentes e massivas campanhas de manipulação que atualmente promovem. Para exemplo: a conferência que o diário mais vendido em Portugal organizou para promover a biotecnologia à custa da miséria das alterações climáticas. A ameaça foi clara, sem edição genética e glifosato vai haver mais fome, afirmando-se a necessidade de continuar a “revolucionar a natureza” esperando que a Bayer resolva todos os nossos problemas. A primeira não é uma tecnologia segura porque ainda não é reversível (enquanto o DDT foi parado quando entendemos o problema, ninguém sabe capturar genomas na Natureza se eles derem problemas) e pode inviabilizar a opção legítima de quem opta pela colaboração com os sistemas naturais e a segunda promove problemas de saúde graves, basta observar a quantidade de comunidades em que já foi proibido.

Presumir da estupidez dos outros é pouco inteligente, como dizia Miguel Torga, mas utilizar a iliteracia ecológica atual para fins imediatistas e especulativos, sabendo todos os que ouvimos a comunidade científica, o que está em causa, é inqualificável.

A indústria alimentar atual (…) está muito bem organizada para produzir resultados extraordinários para os seus acionistas.

Há dias ouvia um colega meu afirmar que oitenta porcento da água do rio Tejo perde-se no mar sem saber que antes dos seus interesses o rio não era apenas um canal para levar água para o mar, mas sim uma estrutura vital e determinante para ele poder habitar este planeta, assim como seguramente desconhece que os vinte porcento que já utilizamos mataram completamente o rio com consequências incalculáveis no futuro próximo. É o que dá considerar a Ecologia apenas uma ideologia da esquerda radical? A Ecologia é uma ciência que estuda o sistema que nos criou e sustenta, talvez fizesse sentido dar-lhe um bocadinho mais de atenção.

Restaurar a Natureza, para além da única saída segura para enfrentar os desafios que temos pela frente, não é sinónimo de menos progresso, menos alimento, menos bem-estar, menos economia. Não há nenhuma razão para o ser. Apenas colide com o modelo atual, porque implica mudar, o que custa muito aos interesses instalados.

A natureza que vamos restaurar vai produzir produtos e serviços muito mais valiosos e benéficos do que os que obtemos hoje de forma tão desastrosa.

A maioria dos humanos ainda vive de ecossistemas produtivos. Só no mundo ocidental é que diabolizamos a fórmula inteligente da recoleção promovendo apenas a fórmula da produção agrícola. O roubo da Vida que inerente à agricultura industrial, foi a partir do século XVIII, não só foi assumido como condição de desenvolvimento, como foi usado como argumento para nos apropriarmos das terras do Novo Mundo e escravizar os seus ocupantes.

Por pesado que seja não há nenhum passado que uma sociedade não possa arrumar. Temos perto, exemplos recentes.

Numa Europa esterilizada à beira de um caos climático é urgente, como reconhece a lei do restauro da Natureza, efetivar de uma forma significativa, uma transição para modelos de recoleção. Aproveitar as alterações climáticas para expandir o modelo que as promoveu assaltando os últimos refúgios de Natureza com mais monocultura industrial e produção de energia é uma estratégia só explicável pela arrogância do desespero.

A Agroecologia, ciência que aborda o ser humano como elemento do sistema natural, detém conhecimento e práticas mais do suficiente para alimentar o mundo e ao mesmo tempo recuperar a natureza que destruímos. Permite mais bem-estar a todos os níveis. A agrofloresta de sucessão dinâmica é um bom exemplo. A questão é sempre a mesma. Envolve mudança de dieta e de estilo de vida.

Mas para isso estão as leis, para promover transições, e estamos todos nós com a nossa consciência e com o nosso exemplo. Estou certo que este marco vai significar uma viragem expressiva, através de um novo caminho, há muito começado, na vivência da responsabilidade do Antropoceno.