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Rafael Nabais

Paulo Carneiro: “a Savana e a Montanha é um manual de desobediência civil sob a forma de filme”

24 Apr 2025 - 09:00
A Savana e a Montanha é uma recriação de uma ‘luta’ real empreendida pelos habitantes de Cova do Barroso, que se opõem à exploração do lítio na região, contra a empresa de exploração mineira britânica Savannah Resources Plc. O primeiro ecowestern português cruza referências dos filmes de índios e cowboys com realidade e ficção, drama e alguma ironia. Com realização de Paulo Carneiro, esta coprodução luso-uruguaia, passou pelo festival Cannes, pelo Lima Alterna Festival Internacional de Cine, no Peru, onde foi distinguido com o prémio de Melhor Filme, pelo Festival Internacional de Documentários de Buenos Aires, na Argentina, chega hoje, dia 24 de abril, às salas portuguesas.

Um filme que é um “manual de desobediência civil”, uma efabulação, quase como um sonho” diz o realizador Paulo Carneiro sobre o seu novo filme, A Savana e a Montanha, um documentário ficcionado a partir da controversa exploração de lítio na mina de Cova do Barroso, no município de Boticas, em Vila Real, e a ‘luta’ que a população local trava, desde 2018, contestando este tipo de mineração e as danosas consequências ambientais daí decorrentes, temendo que contamine os solos e desfigure o território e a paisagem, pondo em causa seu estilo de vida.

O realizador fala ao Green EFact sobre os processos de criação do filme, a sua terceira longa-metragem, a seguir a Bostofrio, rodada também na região, onde tem raízes familiares.

 

Pode-se dizer que a Savana e a Montanha é o primeiro “ecowestern” alguma vez realizado?

Pode ser, sim (risos). Isso fica um pouco ao critério de cada um. Afinal os filmes são sempre feitos para o espectador, não é verdade?

 

Porque optou por referências do western?

É interessante pensar que o filme, enquanto objeto de criação, também tem esse lado de configurar-se à volta da própria vida e daquelas pessoas. É exatamente por isso que criar este filme foi um ato de grande importância social. A luta das pessoas de Cova do Barroso já dura há alguns anos com os seus altos e baixos, notícias, aprovações, reformulações, APA para aqui, APA para ali, estudos de impacto ambiental…

O realizador Paulo Carneiro transformou a população de Cova do Barroso em atores, para contar a história da sua própria resistência contra a exploração de lítio na região.

Ainda recentemente houve mais desenvolvimentos, com a pressão sobre o Governo, por parte da empresa, para obter “servidão administrativa” de terrenos no Barroso. Foi desafiante fazer um filme sobre uma situação tão intensa?

Fazer um filme nestas condições foi, efetivamente, um desafio. E o western, um género muito conhecido e que faz parte do imaginário das pessoas que cresceram nos anos 80, foi uma inspiração e uma maneira de conseguir que eles pudessem dar bastante de si ao próprio filme. E também de os motivar nos momentos mais depressivos e tristes.

 

E a ideia foi das pessoas de Cova do Barroso, que na realidade são os atores de A Savana e a Montanha?

Existiu de facto uma abordagem deles próprios, com uma certa autoironia, de fazerem os indígenas contra os cowboys, mas isso também acabou por funcionar como uma ferramenta de motivação.

 

Em que sentido?

No sentido que é esse o sonho do cinema. Entrar numa sala e ‘sonhar’ ao ver o filme, à espera que este nos dê novas esperanças para a vida ou para um interlaçar de pensamentos que estamos a ter. É muito bonito pensar essa ideia do cinema como um sonho, enquanto a possibilidade de alcançar coisas que a vida não pode dar. Não foi fácil trabalhar com esta comunidade. Quando havia uma nova notícia sobre a luta e eles tinham de se reinventar e perceber: “para aonde é que vamos agora?”. O filme cria esse universo que os eleva enquanto heróis.

A “resiliência e criatividade” da luta da população contra a exploração mineira foi um dos aspetos que mais impressionou o realizador, ele próprio com raízes familiares na região.

Por que optou por fazer um documentário ficcionado a partir de factos reais?

Desconstruindo um pouco o filme. A luta não é prática. São os e-mails, as cartas e as revistas que recebem que são factuais. Tudo o resto é uma construção. O ‘inimigo’ são só sensações, na comunicação social, por exemplo, quando esta anuncia que a empresa Savannah vai avançar. Efetivamente é uma criação que quase tenta ser factual, de momentos que eles gostavam que tivessem acontecido. As pessoas não estão a fazer delas próprias, são também uma construção da nossa parte, um bocado a ideia de estarmos a fazer um filme. Há algumas questões factuais como a da mina, mas a Maria não é mãe da rapariga dos chouriços. O que é engraçado porque faz acreditar nesse lado de realidade. O filme quer, através da ficção, mostrar o documental. É quase como um sonho, uma efabulação da luta.

 

O que mais o impressionou na população e na luta que travam?

A grande resiliência e criatividade. O facto de, por exemplo, termos encontrado o Carlos, um músico, que estava ali escondido e não tinha a propensão para criar letras, músicas e arranjos para ele próprio e com este desafio que lhe lançamos, ter hoje as suas músicas transformadas em hinos da luta, conhecidas em grandes manifestações e que passam também na rádio (agora menos porque a empresa em questão decidiu encher as rádios com publicidade…). E há uma ideia de comunidade que o filme tenta passar, eles são fortes e têm tido muitos desafios que fizeram desenvolver, cada vez mais, a própria ideia de grupo, de se juntarem para organizar qualquer coisa. O filme é quase como um manual de desobediência civil que procura, de alguma maneira, convencer-nos de que se não trabalharmos em comunidade não vamos vencer. Eu sem eles não conseguiria fazer o filme e foi bonito perceber a forma como eles o defendem e como os representa. E o músico, considero-o um “herdeiro” de Miguel Torga, José Mário Branco e Zeca Afonso.

Cruzando referências dos filmes de índios e cowboys com realidade e ficção, drama e alguma ironia, a Savana e a Montanha pode ser considerado o primeiro “ecowestern” português.

Como correu o trabalho de rodagem com a população?

Comecei por ir a Cova do Barroso fazer alguns vídeos para as redes sociais, com música para divulgar um pouco do que se estava a passar por ali. De repente havia um mal-estar constante porque os habitantes não sabiam bem se éramos alguns daqueles tipos invisíveis e transparentes, como aquelas pessoas em Lisboa que decidem qual é o futuro das aldeias. Houve alguns momentos muito difíceis em que, com efeito, foi muito importante motivar as pessoas. Depois começaram a perceber a coisa e a divertirem-se mais a fazer o filme e sempre que alguém se desmotivava vinha outra pessoa que a animava. O que começou por ser difícil tornou-se fácil. A rodagem tinha de ser rápida, as pessoas não podiam estar ali 10 horas a filmar durante um dia connosco. A ideia não era fazer um filme que demorasse muito tempo. Claro que levou o seu tempo na montagem. Aliás, não quero apurar a obra, no sentido de ser rápido, porque rápido e bem não há quem (risos).

 

Como tem sido a receção do público?

O filme passou no Uruguai, agora está em França e vai estrear em Portugal e depois vai para a Argentina, Colômbia, Espanha e Suíça.

 

Já foi exibido para a população de Cova do Barroso?

Claro que sim. Depois de Cannes foi exibido em Cova do Barroso, em agosto do ano passado, ao ar livre. Várias pessoas que estão no filme foram ver. Mais gente do que Cannes. Foi muito bonito, porque o filme tem um lado irónico muito transmontano.

 

Uma ironia muito especial…

Sinto isso quando estou a lidar com o meu pai, que é transmontano. Eles têm uma grande capacidade de se rirem deles próprios perante as várias adversidades e o filme tem esse lado de comédia. Não é para ser um realismo social. As pessoas não são atores e o que importa é passar informação e avançar com a narrativa. Evidentemente tem uma subtileza na coreografia. Eles não estavam à espera e ficaram muito impressionados com as suas próprias performances. Sobretudo estranharam eu não dar instruções em relação ao diálogo. É com aquilo que dizem que passam as sensações e esse trabalho para eles era confuso. As pessoas estão habituadas a ver telenovelas em que é tudo demasiado representado. Depois, quando se viram no ecrã ficaram muito impressionados. Claro está, não são atores e, como tal, não estão acostumados a ver-se na tela. Mas o principal objetivo para mim foi alcançado, eles terem orgulho e reverem-se no filme.

O realizador reconhece que, durente a rodagem, houve momentos “muito difíceis” e que o filme serviu também para motivar as pessoas de Cova do Barroso.

E como foi recebido no Uruguai?

Muito bem. Foi muito interessante. Nem estava à espera. Ficaram muito contentes por verem aquelas paisagens. Teve 5 semanas em sala e espero que em Portugal seja igual. Em França estavam 50 pessoas na antestreia. Na Normandia estão agora a lutar contra a Total que quer fazer um projeto de construir painéis solares e viram no filme um exemplo de como é importante não ter ações individuais, antes serem planeadas a partir do grupo. E mesmo, quando individuais, serem pensadas numa discussão comum. Acho que o público francês conseguiu relacionar-se bem com o filme e a crítica foi bastante positiva. Se isso irá mudar muita coisa, não sei, mas pelo menos vai fazer com que se discuta e que muito mais gente saiba do que se está a passar.

 

O que é que espera da estreia do filme cá?

Nunca tenho expectativas em Portugal. Há um despreendimento muito grande em relação ao cinema português. Eu gostava que o filme saísse desse estereotipo porque, na verdade, sai. Acho que se conseguirá relacionar com o publico, mas tento não pensar muito nisso, porque acaba por ser uma frustração.

 

Também porque procura projetar uma luta ambiental que continua …

Devia ser agraciado e valorizado pelos portugueses, porque é um objeto que marca este tempo. E se não marcar agora espero que seja um filme que envelheça bem.

 

Ao rodar o filme, tomou aquela causa como sua?

Já a tinha tomado antes. O meu pai é de Bostofrio, uma aldeia perto do Barroso. Acho que se entende isso no filme e eu continuo a colaborar nessa luta não só através do cinema. Tem de se partir com um olhar e é difícil que seja sem posicionamento. Não pretendo criar qualquer sentimento de condescendência. Pelo contrário, trata-se de um olhar que eleva e engrandece a comunidade.

 

Paulo Carneiro reconhece que tomou a causa da população de Cova do Barroso também como sua e que apenas pretende “engradecer a comunidade” com este filme.

De que forma é que acha que o cinema pode refletir as questões ambientais?

Não refletindo as questões ambientais de forma literal, propagandista, mas encontrando uma força noutras aspetos. Nós vemos paisagens lindíssimas, montanhas fabulosas e temos que fazer o nosso jogo. No filme o que importa, nesse aspeto, é mostrar a diversidade da fauna, da flora, como é que eles vivem em comunidade e qual a sua relação com a natureza e os animais, num lugar que não é idílico. Pode ser isso o cinema ambiental e ecológico, essa a relação entre natureza, homem e animal.

 

Houve histórias engraçadas na rodagem do filme?

Há uma que é muito engraçada que é o facto de o cavalo branco chamar-se Castanho. E as pessoas fartavam-se de rir com isso nas rodagens e achavam que era um erro (risos). Lá está a tal ironia transmontana. Outra aconteceu num dia em que acordamos e estava a nevar. A equipa queria filmar a neve e eu a dizer: “Espera aí, vamos filmar só uns planos e meter no filme? Isso não existe (risos)”. Lembro-me também de termos estado a filmar as abelhas e de estarmos todos protegidos com os fatos de apicultor e o diretor de fotografia ter ficado nervoso e, como as abelhas sentem a tensão, poderia haver o azar de lhe entrar uma pelo fato… Se tivesse de eleger uma história seria esse momento.

 

E planos para os próximos filmes, já há?

Terminei agora há pouco tempo. Foi filmado em Cabo Verde, Nha Terra, Nha Força, e aborda a questão do território, na forma como nos relacionamos com o lugar onde vives e não queremos que seja absorvido por questões políticas e, neste caso, também ecológicas.