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Miguel Judas

Maria João Costa: “Existe o mito que barragens e açudes garantem uma maior quantidade de água em períodos de maior escassez”

1 Oct 2024 - 09:00
No Dia Nacional da Água, a coordenadora de água da ANP/WWF alerta em entrevista ao GreeneFact para a necessidade de remover as barreiras obsoletas dos cursos de água nacionais, tal como está estipulado na nova Lei do Restauro da Natureza, recentemente aprovada pelo Parlamento Europeu e que prevê “libertar pelo menos 25.000 km2 de rios em toda a UE”. Recorde-se que esta ONG foi, até à data, a única entidade civil em Portugal a remover já duas barreiras fluviais, nos concelhos de Alcoutim e Santarém, com o apoio do European Open Rivers Programme – uma organização que atribui fundos dedicados ao restauro de rios.

Porque é que a remoção de açudes obsoletos, bem como de outras barreiras fluviais, é tão importante para a conservação da natureza?

A remoção de barreiras (priorizando as obsoletas) é uma das mais importantes ferramentas de restauro fluvial (e também a mais barata): é a forma mais eficaz de restabelecer a biodiversidade e as funções ecológicas que os habitats de água doce fornecem. São inúmeras as vantagens de remover estas barreiras, desde logo porque os rios livres de barreiras permitem a natural dinâmica dos processos ecológicos que ocorrem no ecossistema fluvial, mas também entre ele e os ecossistemas terrestres envolventes. Os rios livres permitem a livre circulação de água, nutrientes, sedimentos, e claro, de fauna e flora. Um rio sem barreiras e com a sua conectividade natural permite que as suas espécies possam completar o seu ciclo de vida ao poderem aceder aos habitats de alimentação e reprodução. Por exemplo, os peixes migradores que têm no seu ciclo de vida as fases marinha e de água doce, precisam de se deslocar a habitats específicos no rio para se reproduzirem. Outra vantagem dos rios livres e restaurados é que levam nutrientes aos estuários e lezírias, contribuindo para o crescimento de espécies pesqueiras, bem como para a produtividade dos campos agrícolas; por outro lado fornecem sedimentos às praias costeiras e aos campos agrícolas adjacentes, prevenindo ainda a erosão dos solos.

 

Mas num país que sofre de situações de seca com alguma frequência essas barreiras não poderiam representar uma vantagem, por reterem a água?

Existe o mito de que as barragens e açudes garantem uma maior quantidade de água em períodos de maior escassez, mas na verdade não é necessariamente o que acontece, porque a aparente disponibilidade de água leva ao seu maior consumo, aumentando a vulnerabilidade da sociedade face à escassez de água e à seca. Por outro lado, o aumento da temperatura e a presença de água parada contribui para a diminuição da qualidade da água e aumenta a probabilidade de ocorrência de blooms de cianobactérias, que são uma ameaça para a saúde pública. A acumulação de sedimentos ao longo do tempo a montante da barragem traduz-se também numa menor disponibilidade de água, devido à redução do volume e da capacidade de armazenamento, e menor recarga natural das praias na costa, levando a custos elevados com recarga artificial das praias. Aliás, algumas grandes barragens contribuem para o aumento da emissão de gases com efeito de estufa, devido à produção e libertação de metano associada à decomposição de matéria orgânica. Por último, as águas paradas, características das albufeiras, aumentam a perda de água por evapotranspiração, já que a água parada evapora muito mais do que num rio a correr; para além disso, promovem ainda a proliferação de espécies invasoras

Mestre em Hidrobiologia pela Universidade do Porto e doutorada em Gestão e Restauro Fluviais pela Universidade de Lisboa, Maria João Costa juntou-se à equipa da ANP/WWF em 2024 como Coordenadora de Água.

Apesar de a nova Lei do Restauro da Natureza obrigar os estados membros da UE “a libertar pelo menos 25.000 km2 de rios em toda a Europa”, esta é uma questão que ainda não se tornou uma prioridade, até em termos de opinião pública, concorda?

Noutros países, a meta de libertação de rios é, de facto, uma prioridade. Em Espanha, por exemplo, em 2023, foram removidas 95 barreiras obsoletas, enquanto em Portugal, no mesmo período, foram removidas apenas duas. Em termos de opinião pública, existe ainda a ideia generalizada, como falámos na resposta anterior, de que as barragens aumentam a disponibilidade de água, mas na verdade é apenas uma falsa segurança e traz consigo uma série de outras desvantagens que temos de levar em conta. Em Portugal, não só não se estão a remover barreiras obsoletas – no rio Douro, por exemplo, existem cerca de 1200 barreiras, das quais 255 já não têm qualquer função, estão apenas a obstruir o curso do rio – como estamos ainda a construir novas barragens (como a do Pisão) com um impacto ambiental elevadíssimo. Este exemplo vem apenas demonstrar o peso da agricultura intensiva, que esgota recursos naturais como solo e água, na gestão destes recursos. Sabemos que o Ministério do Ambiente e Energia e APA têm como prioridade o restauro dos nossos rios, e que o programa do governo contempla e bem, a remoção de barreiras fluviais obsoletas, mas é preciso que haja um plano de restauro estratégico, que envolva também os municípios, a comunidade científica, e as ONGs do ambiente. Precisamos de ver claramente o financiamento para cumprir as metas de restauro fluvial no Orçamento do Estado que em breve será apresentado.

 

Como é que essa perceção pode ser alterada?

O nosso trabalho é também de sensibilização de decisores políticos e do público em geral sobre as vantagens de remover barreiras obsoletas. É importante mostrar aos nossos decisores que, em termos económicos, remover uma barreira obsoleta tem custos muito inferiores aos custos da sua manutenção ou construção. Por outro lado, como o rio transporta nutrientes, aumenta a produtividade dos campos agrícolas e como transporta sedimentos às nossas praias costeiras, não precisamos de gastar milhões anualmente a reforçar a areia nas praias. Num lado mais social, procuramos sensibilizar as pessoas para o facto de os rios livres trazerem mais disponibilidade de água, e água de mais qualidade. As pessoas ganham com isso e a natureza também.

Algumas grandes barragens contribuem para o aumento da emissão de gases com efeito de estufa, devido à produção e libertação de metano associada à decomposição de matéria orgânica.

No caso português qual é a área de rio que deverá ser libertada e como é que isso poderá ser feito?

A Lei do Restauro da Natureza, em vigor desde Agosto de 2024, prevê que os Estados-Membros apliquem medidas de restauro dos ecossistemas fluviais degradados, com foco no restauro da sua conectividade natural e das funções naturais da planície aluvial de forma a assegurar sua resiliência e sustentabilidade a longo prazo. Os Estados-Membros terão de inventariar as barreiras artificiais, identificando as que são necessárias remover para cumprir o objetivo de restaurar o curso natural dos rios numa extensão de pelo menos 25.000 km na UE até 2030. Fazendo uma simples proporção baseada na área de Portugal em relação aos 27 Estados-Membros, seria esperado que Portugal libertasse uma extensão de cerca de 2.2% dos 25.000 km, resultando numa estimativa de cerca de 550 km. Esta aproximação simplificada parece que está em concordância com o plano que APA e Ministério do Ambiente e Energia têm vindo a divulgar e implementar, mas no nosso entender fica muito aquém das reais necessidades no terreno. Importa notar o levantamento feito pela APA que identificou mais de 8000 infraestruturas hidráulicas, número este claramente subestimado, e que, para mais ainda, não identifica as barreiras obsoletas.

 

Já existe alguma estratégia a nível governamental nesse sentido?

A APA e o Ministério do Ambiente e Energia divulgaram publicamente, em várias notícias, o seu plano de restaurar diversos cursos de água, mas daquilo que é o nosso conhecimento, não há uma estratégia objetiva que tenha sido divulgada e sobre a qual tenha havido uma possibilidade de discussão conjunta que envolvesse diferentes entidades que atuam no restauro fluvial, como municípios, comunidade científica ou ONGs do ambiente. Que critérios foram aplicados para selecionar os atuais rios que estão já a sofrer uma intervenção de restauro? Que ações foram implementadas? Que tipo de intervenções são consideradas restauro ecológico? Houve discussão sobre isto? Pode-se considerar porventura a reabilitação de infraestruturas como sendo restauro, como alguns anúncios recentes querem fazer crer? Não temos ainda resposta a nenhuma destas questões.

 

Em comparação com os restantes países da União Europeia como está a situação em Portugal?

Há países na Europa que há muito despertaram para esta realidade e necessidade de restauro. Em 2023, França (156), Espanha (95), Suécia (81) e Dinamarca (72) lideraram o ranking de países que mais barreiras removeram. Portugal, infelizmente, ainda tem um longo caminho a percorrer e nesse ano posicionou-se na cauda deste ranking com apenas duas barreiras removidas – ambas removidas por entidades da sociedade civil, uma delas a ANP|WWF. Em 2021, Portugal posicionou-se em penúltimo lugar com apenas uma barreira removida, à frente da Eslováquia.

O Açude de Galaxes, em Alcoutim, no Algarve, foi a primeira barreira obsoleta a ser removida em Portugal, permitiu não só restaurar a conectividade de 7,7 km da Ribeira de Odeleite (bacia do Rio Guadiana) como também contribuir para a conservação de diversas espécies de peixes.

A WWF foi a primeira organização da sociedade civil em Portugal a remover um açude, em Alcoutim, seguindo-se um outro em Santarém. Como foi a reação local a esses trabalhos?

Uma vez que a perceção geral das barreiras fluviais ainda é a de que são um grande suporte para pessoas e agricultura, principalmente em tempos de seca, por vezes pode ser difícil obter uma aceitação no primeiro contacto. No entanto, contámos sempre com o apoio das respetivas autarquias (Município de Alcoutim e Município de Santarém) que, em parceria connosco e com os proprietários das barreiras, levaram a cabo estas remoções. Fizemos também sessões de esclarecimento e sensibilização à comunidade, incluindo ações de educação ambiental. A longo prazo, acreditamos que será mais fácil para todas as pessoas compreenderem os benefícios das remoções, quando começarem a ver o rio e as suas margens a regenerarem.

 

Como funciona esse processo? De que forma são selecionados os locais a intervencionar e de que modo se faz a ligação com os proprietários dos terrenos e demais agentes locais?

Este processo é ainda, infelizmente, muito oportunista. Temos, em conversas com entidades locais e nacionais (autarquias, ICNF, APA), selecionado algumas barreiras obsoletas identificadas por elas, e depois iniciamos o trabalho conjunto de identificar proprietários para obter autorização para remover, procurar financiamento filantrópico, e fazer todo o trabalho de envolvimento das pessoas e entidades, levantamento técnico das barreiras, pedidos de autorização, subcontratação de empreiteiro, planeamento da remoção e deposição de resíduos da demolição, planeamento da comunicação da remoção, remoção propriamente dita, restauro das margens após a remoção, monitorização pré- e pós-remoção, etc.

 

Existe alguma obrigação legal para a remoção dessas barreiras obsoletas?

Infelizmente, para as barreiras que o Estado já identificou como obsoletas não há qualquer obrigação de fazer a sua remoção, ao contrário do que Espanha já tem consagrado na sua lei. Aliás, nós defendemos que as barreiras que já foram identificadas pelo próprio Estado como obsoletas devem ter um licenciamento mais célere, já que essa justificação para a remoção não se coloca, é autoexplicativa.

Infelizmente, para as barreiras que o Estado já identificou como obsoletas não há qualquer obrigação de fazer a sua remoção, ao contrário do que Espanha já tem consagrado na sua lei.

Quais são os rios mais prioritários em Portugal? Aqueles em que é mais urgente remover estas barreiras?

Numa primeira reação, cremos que os três grandes rios transfronteiriços (Douro, Tejo e Guadiana) e as suas bacias hidrográficas poderiam ser o ponto de partida para estas intervenções, pela sua importância e nível de degradação ambiental. Sabemos que a remoção de barreiras não resolve todos os problemas destes rios e suas bacias, mas poderiam ser a “alavanca” para promover um leque alargado de intervenções para a melhoria do seu estado ecológico, a par de outras soluções baseadas na natureza. Dentro de cada uma destas bacias, poderia começar-se com as barreiras que, sendo removidas, libertam um maior troço de rio, que coincidam com as áreas de distribuição de espécies aquícolas ameaçadas, etc. No entanto, esta estratégia deve ser, a nosso ver, um trabalho multidisciplinar e participativo, ou seja, não exclusivo do Estado nem dos investigadores. Por exemplo, já há várias autarquias e ONGs de ambiente com experiência nestas intervenções que também podem contribuir para a definição dos critérios de priorização, para o processo de seleção das barreiras, e, finalmente, na implementação da priorização.

 

Muitos açudes são hoje atrações turísticas, como praias fluviais ou outras áreas de lazer, nesses casos como poderia ser minimizado o efeito que têm na natureza?

Sim, esses açudes cumprem claramente uma função de lazer, mas é preciso ter em conta os custos ambientais da sua manutenção e utilização. Muitas das chamadas praias fluviais não são mais do que uma artificialização das margens dos rios, e por vezes também do leito, quando se instalam ou se aproveitam infraestruturas transversais previamente existentes, muitas delas obsoletas. As águas calmas geradas pelas barreiras fluviais são agradáveis para quem quer dar umas braçadas tranquilas, mas são prejudiciais para a saúde ecológica de um rio. Água parada é água mais quente e menos oxigenada, mais propícia à proliferação de microalgas, que são também prejudiciais à saúde humana. Água revolta, que corre livremente, é muito melhor para a fauna e flora de um rio, e também proporciona oportunidades de lazer às pessoas, embora diferentes. As autarquias seriam mais estratégicas se procurassem proporcionar uma oferta turística diferenciada da oferta que encontramos na faixa costeira, que seja baseada em rios livres de barreiras, bem oxigenados, onde se podem fazer atividades como kayak e rafting, do que replicarem artificialmente no interior do país as praias costeiras de areia branca e águas relativamente calmas.

 

Ainda existe algum curso de água livre em Portugal?

Infelizmente, não. Conhecido como o último rio selvagem, o Rio Sabor é um afluente do Douro que foi alvo da construção de uma barragem para produção de energia hidroelétrica há cerca de 12 anos.