“Vamos usar menos. Sim, eu sei que somos um retalhista, e percebo que estou a dizer para comprarmos menos. Não faz mal. Queremos vencer num mundo sustentável. Não queremos ganhar num mundo insustentável. Por isso, sim, comprem menos, usem menos.”
Foi com estas palavras inesperadas de Paulo Azevedo, chairman da Sonae, que o Innovators Forum’24 terminou. Após quatro horas de debate sobre o estado atual da economia circular, num fórum que reuniu especialistas nacionais e internacionais, o empresário mostrou-se otimista quanto ao futuro, mas admitiu que a espécie humana está a “estragar” o planeta.
“Este é o único sítio onde podemos viver. Vivemos neste lugar imenso, aberto e vazio e estamos a estragá-lo, por isso tem de ser arranjado”, referiu. “Acredito que vamos conseguir cumprir todos os difíceis objetivos de sustentabilidade. Como espécie, já o fizemos antes no passado, e fá-lo-emos de novo”, assegurou.
Paulo Azevedo reforçou ainda que a reciclagem não chega para mitigar os impactos do consumo: “A reciclagem não é o primeiro objetivo. Deveria ser o último. Infelizmente, mesmo no último objetivo, não somos muito bons”, lamentou.
O chairman da Sonae, Paulo Azevedo, terminou a sua intervenção no Innovators Forum 20224 com um inesperado apelo a que se consuma menos.
Horas antes, na abertura do evento, a sua irmã Cláudia Azevedo, atual CEO da Sonae, adotava um discurso semelhante: “A circularidade faz parte da nossa história. O meu pai, em 1995, escrevia ‘newsletters’ para a Sonae chamando a atenção para a importância de uma gestão ambiental integrada nos nossos negócios”, disse. “Não há bons negócios num mau planeta”, rematou.
Há poucos dias, no âmbito da divulgação do Innovators Forum’24, a Sonae garantiu, em comunicado, que já fatura 90 milhões de euros com a economia circular. Em causa estão novos modelos de negócio como a reparação de equipamentos eletrónicos, a reciclagem de vestuário e a venda de produtos em segunda mão ou a granel, que “contribuem diretamente para um impacto ambiental e social positivo”.
Com a realização deste fórum dedicado ao tema, a multinacional procurou reafirmar o seu compromisso com a circularidade – modelo económico que promove a reutilização, reciclagem e redução de desperdícios, maximizando o valor dos recursos ao longo do seu ciclo de vida. O conceito opõe-se ao modelo linear tradicional de produção e consumo, que se baseia em extrair, usar e descartar, promovendo em vez disso práticas mais sustentáveis e responsáveis.
Uma das oradoras principais do encontro foi Ivone Bojoh, CEO da Circle Economy Foundation, responsável pela edição anual do Circularity Gap Report. Durante a sua intervenção, a especialista citou o último relatório, que revela que não só a taxa de circularidade global permanece baixa, como está em queda. A percentagem de materiais secundários consumidos pela economia mundial diminuiu de 9,1% em 2018 para 7,2% em 2023 – uma queda de 21% ao longo de cinco anos.
Uma das oradoras principais do encontro foi Ivone Bojoh, CEO da Circle Economy Foundation, responsável pela edição anual do Circularity Gap Report, que revela que não só a taxa de circularidade global permanece baixa, como está em queda.
Em Portugal, segundo os dados mais recentes do Eurostat, a taxa de circularidade foi de apenas 2,8% em 2023, diminuído 0,5 pontos percentuais face ao ano anterior e posicionando o país em 24.º lugar entre os 27 estados-membros da União Europeia, cuja média é de 11,8%.
“Porque é que estamos a tornar-nos menos circulares? Porque estamos a crescer como população em todo o mundo e continuamos a extrair cada vez mais material da Terra. Para além disso, nos últimos 100 anos, consumimos quase tanto como nos últimos cinco ou seis anos”, explicou Ivone Bojoh.
Sobre ações urgentes para colmatar a lacuna da circularidade, a especialista recomenda dar maior atenção ao setor industrial, especialmente nas áreas de produção alimentar, eletrónica, moda e transportes, em detrimento da construção.
“No final de contas, teremos de continuar a construir habitações e escolas, especialmente nos países em desenvolvimento e em crescimento. Agora, onde podemos concentrar os nossos esforços é no fabrico”, referiu.
Ivone Bojoh apelou também à responsabilização das pessoas e das empresas: “Tudo se resume aos indivíduos. Se liderarmos uma empresa, ou se estivermos numa posição sénior, as escolhas que fizermos neste momento vão fazer uma enorme diferença.”
A CEO da Circle Economy Foundation destacou ainda que a economia circular é frequentemente confundida com a reciclagem, mas o conceito é muito mais amplo. Para a especialista, a verdadeira essência da circularidade envolve inovação e uma visão estratégica sobre como utilizamos e obtemos recursos. Em vez de depender exclusivamente da extração de matérias-primas virgens, é essencial explorar alternativas, como, por exemplo, a “extração urbana” – isto é, o aproveitamento de resíduos acumulados nas cidades como fontes valiosas de recursos.
Em Portugal, segundo os dados mais recentes do Eurostat, a taxa de circularidade foi de apenas 2,8% em 2023, diminuído 0,5 pontos percentuais face ao ano anterior.
A par da circularidade, a inovação foi outro dos temas que marcou o Innovators Forum’24. Num dos painéis de discussão, que explorou a transição para uma economia circular e regenerativa, Bernd Halling, diretor de política e divulgação da Re-imagine Europe, defendeu que a inovação e a sustentabilidade devem andar de mãos dadas.
“Há quem diga que a tecnologia não nos pode ajudar, só as velhas e clássicas soluções ‘verdes’. Esta polarização é falsa e temos de tentar trabalhar a nível europeu, nacional, mas também com as nossas partes interessadas, para ultrapassar este pensamento negro e ver qual é o caminho intermédio”, referiu o dirigente da organização, que promove a inovação e o desenvolvimento sustentável na Europa.
Noutro painel de discussão, sobre os desafios enfrentados pelas empresas na implementação de práticas circulares, a especialista em sustentabilidade da Sonae MC, Ana Vilaça, referiu que, do lado dos consumidores, nota um interesse pela reciclagem, mas também resistência no que toca à reutilização de produtos.
“Os clientes valorizam a existência da gama de produtos orientados para a circularidade. Estamos a falar de produtos compactos e de produtos de recarga. Também têm uma grande predisposição para a reciclagem e para a entrega desses resíduos domésticos no retalho alimentar”, esclareceu.
Por outro lado, “ainda não estão preparados e têm comportamentos restritivos relativamente à reutilização das embalagens quando vão fazer as suas compras”.
Bruno Borges, CEO da iServices, empresa especializada na reparação de dispositivos móveis, apelou à “reflexão” dos empresários presentes no fórum, “num momento em que tudo é tão descartável na nossa sociedade”
No mesmo painel, marcou presença Bruno Borges, CEO da iServices, empresa especializada na reparação de dispositivos móveis comprada pela Worten. O empresário garantiu que “100% dos equipamentos” utilizados pelos funcionários da iServices são “orgulhosamente recondicionados”, incluindo telemóveis e computadores.
Bruno Borges falou ainda sobre a importância da “formação” das pessoas no que toca a práticas circulares e apelou à “reflexão” dos empresários presentes no fórum: “Num momento em que tudo é tão descartável na nossa sociedade, há certamente muitas oportunidades no mercado para a circularidade. Não será por acaso que há uma série de empresas emergentes a vender artigos de segunda mão. Ver o que podemos fazer de diferente é uma tarefa de reflexão”, concluiu.