O projeto partiu mesmo da urgência de refletir e “olhar com coragem” a problemática ambiental. “O teatro é a nossa forma de agir e a partir do momento em que nos surge uma inquietação, temos necessidade de a traduzir em matéria teatral”, adianta o ator e encenador Miguel Fragata.
“Claro que as respostas que o teatro pode dar, face a um problema tão complexo e, ao mesmo tempo, tão concreto, são muito indiretas. Não pode mudar o mundo, mas tem o poder de criar comunidades, um pensamento e a possibilidade de sonhar em conjunto”, defende.
Quando falamos de crise climática, no entender de Miguel Fragata, “estamos também a falar de uma crise de imaginação, na medida em que não conseguimos imaginar um mundo diferente”. Evidentemente, “há muita coisa concreta que se pode fazer, mas também podemos começar a inventar outras alternativas. E aí o teatro tem uma responsabilidade”.
Ver a realidade a partir do palco e da ficção é o propósito de O Estado do Mundo, “imaginar, em conjunto com o público, outros caminhos em relação aos destinos da humanidade”, acrescenta.
Iniciado em 2021, com O Estado do Mundo Quando Acordas, um espetáculo pensado para um público mais jovem, o projeto foi desenvolvido em vários meios, envolvendo diferentes áreas, o que permitiu aos criadores, Miguel Fragata na encenação e conceção e Inês Barahona no texto, aproximarem-se de “diferentes parcelas da população e de compreender qual a sua relação com a questão climática”.

Ver a realidade a partir do palco e da ficção é o propósito do diptíco teatral O Estado do Mundo, composto por duas peças centradas na leitura de estudos científicos e no acompanhamento de alguns projetos de sustentabilidade. (foto: Guilherme Martins)
A princípio, foi feita uma pesquisa centrado na leitura de estudos, no acompanhamento de alguns projetos de sustentabilidade “em curso no território, nomeadamente no Minho e em Lisboa, e no contacto com instituições que trabalham ativamente no combate às alterações climáticas”.
Um processo que seria aprofundado depois numa intensa interação com as pessoas e as comunidades, em diversas cidades, vilas e aldeias portuguesas, mas também francesas, com oficinas, encontros, um inquérito ou pequenas peças surpresa, em lugares não convencionais.
Além dos dois espetáculos foi também realizado um ciclo de filmes curtos com propostas de mudança quotidiana, em várias frentes desde a compra de roupa, fast-fashion, à alimentação mais sustentável, amiga do ambiente.
Foi ainda realizado um documentário chamado Improváveis de Costas Voltadas, exibido com Terminal, que mostra um conjunto de 100 entrevistas, todas elas com duas pessoas, com o objetivo de perceber “até que ponto a polarização em relação à questão está presente na sociedade, pondo em diálogo opiniões e pontos de vista muito contrastantes, políticos, sociais, de formação e de perspetiva face à crise climática”, adianta Fragata.

O trabalho no terreno culminou em Terminal (O Estado do Mundo), estreado em Abril do ano passado e que esteve depois no festival Internacional de Teatro de Avignon, em julho, continuando ainda em cena por palcos nacionais ao longo de 2025. (foto: Estelle valente)
“Também reunimos vários ativistas para compreender o que os move, o que está em jogo para eles, quais os limites da luta climática, da desobediência civil e porque é que ela é necessária”, explica ainda.
“E ouvimos especialistas como Viriato Soromenho Marques ou Jorge Paiva no sentido de perceber a forma como a ciência olha para esta questão e o que é que isso representa, numa dimensão muito concreta no nosso dia-a-dia”.
Um trabalho no terreno que culminaria em Terminal (O Estado do Mundo), estreado em Abril do ano passado, que esteve depois no festival Internacional de Teatro de Avignon, em julho, e passou por diferentes palcos.
A cruzada teatral pelo planeta prossegue agora com apresentações já a 15 de fevereiro, na Covilhã, a 1 de março em Bragança, a 8 no Montijo, a 14 em Lagos e a 22 em Estarreja. A 12 de junho, vai subir à cena em Setúbal.

Para concretizar a peça A Barca dos Loucos, o ator e encenador Filipe Abreu transformou uma bicicleta com 11 anos num gerador elétrico para produzir a eletricidade e armazenar uma bateria e circuitos LED. (foto: Sónia Godinho)
Muita pedalada ambiental
A “pedalar” pela sustentabilidade e pelo meio ambiente também Filipe Abreu criou A Barca dos Loucos, produzido pela companhia Cepa Torta, que esteve em cena em maio de 2022.
Segundo o ator e encenador, o espetáculo era uma “tentativa de abordar os problemas ecológicos que o ser humano tem vindo a causar ao planeta”, mas numa “perspetiva muito pessoal”, sob a forma de uma conferência/performance: “Tentei falar do que é a ecologia para mim e no meu percurso”.
Para isso, decidiu passar das palavras aos atos, procurando diminuir a pegada ambiental de um espetáculo teatral e dando o exemplo de um palco sustentável.
“A ideia foi fazer o cenário com materiais reciclados, com plantas e com uma bicicleta com 11 anos de idade transformada com um gerador elétrico para produzir eletricidade e armazenar uma bateria e circuitos LED, de modo que fosse eu a pedalar, antes e durante a performance, e produzir energia para o espetáculo”, conta.
Não lhe faltou a pedalada, mas a experiência deixou-lhe alguma perplexidade. “Do ponto de vista conceptual é muito giro, sustentável e ecológico, mas quando pensamos na quantidade de material que tivemos de comprar novo, ou mesmo em segunda mão para pôr o espetáculo em funcionamento, começamos a questionar-nos: será que faz mesmo efeito?”, observa.

Filipe Abreu pedalava pedalar, antes e durante a performance, para produzir energia necessária para o espetáculo. (foto; Sónia Godinho)
Filipe Abreu levou mesmo a peito o seu questionamento ecológico e acabou por se mudar para o campo e dedicar-se à agricultura, mantendo-se, no entanto, ligado ao festival de leituras encenadas Esta Noite Grita-se, que dirige com Miguel Maia, diretor da companhia Cepa Torta, com quem coordenou também o Malacate, um projeto europeu de recuperação e intervenção artística nas Minas de São Domingos, perto de Mértola.
Miguel Fragata pesa, igualmente, a pegada teatral e assume que a sustentabilidade é agora uma ideia indissociável dos projetos da companhia Formiga Atómica, mas não deixa de salientar que “o ato simples de fazer teatro é tudo menos sustentável”.
Como tudo o resto, também “a ação e a criação artística são consumidoras de recursos e por mais voltas que possamos dar é uma dimensão que não podemos mudar em absoluto, apenas pequenas coisas”, sublinha Fragata. “Mas acreditamos que o grande contributo que o teatro pode dar para a luta climática é a possibilidade de alterar mentalidades, trazer consciência e propor uma reflexão”.

A questão da água, mais em concreto a falta dela, foi o ponto de partida para o espetáculo Todas as Lágrimas Não Serão Suficientes, do Teatro dos Aloés.
Levar a água ao seu palco
Refletir sobre a questão da água, mais precisamente da falta dela foi o ponto de partida para o espetáculo Todas as Lágrimas Não Serão Suficientes, do Teatro dos Aloés, com encenação de Pétronille de Saint-Rapt, apresentado em julho de 2024.
“A água é o bem mais precioso, sem a qual não pudemos viver, e continuamos a desperdiçá-la, como se fosse normal”, diz a atriz Elsa Valentim que também participou na criação do texto e do espetáculo, com os outros atores do elenco: Jorge Silva, Mariana Lobo Vaz e Pedro Emauz.
“Portanto há alguma coisa de errado na nossa forma de pensar, de atuar. Ao mesmo tempo, sabemos o que se passa e não mudamos nada em relação aos nossos hábitos. Isso preocupa-nos”, sublinha.
Foi essa preocupação que levou à criação de Todas as Lágrimas não Serão Suficientes, que envolveu também alunos das escolas da Amadora. “Temos a esperança de que quanto mais se falar do assunto, mais as pessoas vão ganhar consciência do problema da água”, adianta ainda a atriz e encenadora.

O ator e produtor Guilherme Gomes apresentou recentemente no Teatro do Bairro, em Lisboa, Uma Peça para Quem Vive em Tempo de Extinções, um monólogo de Miranda Rose Hall protagonizado por Ana Tang.
“Pode ser uma pura utopia porque os hábitos são difíceis de mudar, estão muito enraizados como se a água estivesse cá sempre e nunca fosse desaparecer”, alerta Elsa Valentim. E prossegue sobre a necessidade de consciencialização sobre a temática: “Pensar salvar o planeta sozinho é um absurdo, mas cada um de nós pode começar a fazer mais, porque temos que criar condições para a nossa sobrevivência”.
Outros criadores teatrais, como o encenador, ator e produtor Guilherme Gomes, que recentemente apresentou Uma Peça para Quem Vive em Tempo de Extinções, de Miranda Rose Hall, no Teatro do Bairro, partilham preocupações ambientais e de sustentabilidade e em relação ao futuro do planeta. E o teatro pode ter, na sensibilização ambiental, um papel principal.
“Transmite sensações, emoções, pensamentos que as pessoas não teriam sozinhas”, salienta Filipe Abreu. “E quanto mais abrirmos os horizontes, mais podemos ter empatia pelos outros, conhecermos diferentes pontos de vista e não ficarmos cingidos ao nosso”.
Elsa Valentim, por seu lado, faz notar que o palco é “um meio privilegiado para falar das questões climáticas que nos preocupam”.
Afinal, “o papel do teatro é sempre pôr-nos a ver ao espelho enquanto humanidade”. Fica a ‘deixa’.